(desenho de Luís Fontinha/MiLove)
O Eduardinho ainda não tinha percebido o que acabava de acontecer e já eu lhe ouvia as palavras de queixume,
- E continuei com o meu trabalho, tinha o meu corpo poisado sobre a tela e na mão um pincel, um pano pendurado no ombro esquerdo e o avental de plástico protegia-me das tintas e dos suspiros da noite,
Saboreava o meu cachimbo coisa rara nos últimos tempos e que vou assiduamente continuar a fazer todas as noites e antes de adormecer, e chegavam até mim os sons engasgados do Eduardinho,
- Foda-se maldito telemóvel,
E fiquei sem perceber,
- Na tela começava a acordar uma mulher de cabelo curto e loiro e nos lábios percebi que cresciam gladíolos e no sorriso habitava uma gaivota pincelada de azul e amarelo, estava nua, e sobre as coxas o mar à minha espera, e com o pincel mergulhado no azul-marinho, retoque aqui retoque acolá, lá consegui desviar o mar das coxas da mulher e ela mexeu-se e rodou o corpo para junto das rochas onde se escondiam as algas da noite e os malmequeres da manhã,
O Eduardinho bate à porta do atelier e entra como se fosse um furacão depois de uma borboleta bater as asas na Indonésia,
Olho-o e percebo que a mulher nua da tela se cobria com alguns pedacinhos de nuvem,
- O que foi Eduardinho?
O que foi?
- E no lábio inferior sílabas de sangue, e comecei a pensar que alguma coisa tinha acontecido, o Eduardinho a explicar-me que estava a cortar as unhas dos pés, o pé direito estacionado sobre um banquinho de fórmica e na mesa o telemóvel que quase sempre nunca toca porque ninguém lhe liga,
Ninguém me liga O que quer?
- E eu não quero nada mas há quem queira alguma coisa e não é assim que se tratam Os Munícipes,
Os Munícipes têm de ser tratados com toda a educação independentemente de usarem ou não fato e gravata queixava-se o Eduardinho,
- Aprende a falar Rapaz,
O pé direito estacionado sobre um banquinho de fórmica e na mesa o telemóvel que quase sempre nunca toca porque ninguém lhe liga, mas quis o destino que o telemóvel começasse a tocar e o Eduardinho com a euforia do toque lança repentinamente a mão sobre a mesa e desequilibra-se e tomba de queixos sobre a mesa,
E os dentes fixam-se ao lábio inferior,
- Apetece-me rir mas não tenho coragem,
A voz rouca que sobressai do gaiolo O que quer?
- Eu? Eu não quero e nunca quis nada,
Respondo ao Eduardinho que nada posso fazer, que me deixe em paz porque estou a trabalhar e que se alguma coisa eu possa fazer apenas é dar-lhe umas pinceladas com tintura de iodo no lábio,
Nem penses responde-me ele, isso nunca,
- Então boa viagem e a porta de entrada é a serventia do atelier,
O que quer? A voz saltitante nas paredes do gaiolo,
Nada, eu nada,
Mas há quem queira,
- Coloco novamente os olhos na tela e o Eduardinho abandona o atelier da mesma forma que entrou,
Furioso,
- E a mulher começa a comer os pedacinhos de nuvem e só depois percebi serem de algodão doce, e por mais pinceladas que eu desse na tela faltava alguma coisa, recomecei de novo,
Tinha o mar, tinha gaivotas e tinha a mulher e as nuvens de algodão doce, e tinha as rochas e as algas e os malmequeres e gladíolos,
E o que quer?
- E claro digo eu em voz alta Faltam as estrelas,
E comecei a pintar estrelas na tela até me cansar de ouvir a voz saltitante contra as paredes do gaiolo,
O que quer? O que quer? O que quer? O que quer? O que quer? O que quer? O que quer?,
A mulher levanta-se da tela, poisa sobre os ombros pétalas de malmequer, e quando chega até mim abraça-me e beija-me,
E enquanto a beijava e a acariciava ouvia a voz do Eduardinho em Ais e o rapaz do gaiolo,
O que quer? O que quer? O que quer? O que quer? O que quer? O que quer? O que quer?,
- E eu não quero nada,
Ela pega-me na mão e leva-me para o divã junto à janela do atelier, e começam as brilhar as estrelas na tela.
(texto de ficção)