Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

30
Abr 12

Não conheço a menina de lado algum, tão pouco a matrafona que a acompanha,

- Olá eu sou o Vasco, Qual Vasco “Caralho”?, E que eu saiba não existe nenhum Vasco na minha vida, e não entendo a razão destes dois parvalhões, durante a noite, descerem até mim e entrarem nos meus sonhos,

A menina aproxima-se, aproxima-se em silêncios de amêndoa quando a primavera rompe as montanhas e do rio ensanguentado de pólen uma abelha saltita à procura das sílabas do mar, o parvalhão do Vasco olha-me entre dois pedaços de marmelada e queijo de cabra, oiço da fazenda contigua ao palheiro os gemidos do bode, Raios o partam Grita a menina de mão dada ao Vasquinho,

- Qual Vasco “Caralho”?,

O chibo irritado às marradas contra o canastro plantado no canto esquerdo da eira, sento-me e começo a sentir a afamada comichão dos resíduos do milho, imagino o meu avó, imagino o tio Serafim, imagino os velhos com esqueletos transparentes às voltas com o malho, e uma finíssima poeira entra dentro de mim,

- E por instantes esqueço os dois parvalhões que me visitam durante a noite, a menina e o Vasquinho, e em frente ao espelho do guarda-fato vejo-me em Carvalhais – S. Pedro do Sul, e oiço o bater do malho na eira, e em gestos desorganizados digo ao meu avó Domingos (que se enervava com o nome porque dizia que Domingos era nome de preto e que todos os pretos se chamavam Domingos), e digo ao meu avó Domingos que para a tarde terminar em beleza apenas faltam os Fingertips, Que tal Avó?,

É o que eu te digo meu filho Arranja uma gaja rica, E calo-me porque não foi isso que lhe perguntei, E calo-me porque essas coisas de riqueza...,

- Prefiro mesmo ouvir os Fingertips,

Portanto à questão do porquê da visita de dois parvalhões durante o meu sonho, a menina e o Vasco,

- Olá Eu sou o Vasquinho!,

Qual Vasco “Caralho”? Arranja mas é uma gaja rica e deixa-te de “merdas”.

 

 

(texto de ficção não revisto)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:39

Aos olhos

a paixão pigmentada do cansaço

o murmúrio das palavras

em sexo num vão de escada

gemidos descem do sótão

como crianças embriagadas no berço da tarde

 

aos olhos

dos olhos

a literatura com chá e torradas

e sumo de laranja

 

e palavras

 

e murmúrios

 

aos olhos

 

aos olhos

o silêncio da noite

dentro de uma caixa de sapatos

sem janelas

sem gatos

aos olhos

 

e palavras

 

e murmúrios

 

e conversa fiada.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 17:59

Também sou humano

tenho pernas e braços

e preciso de comer,

também sou humano

tenho pernas e braços

e preciso de viver,

 

também sou humano

tenho pernas e braços

e preciso de caminhar,

também sou humano

tenho pernas e braços

e preciso de trabalhar.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 12:19

29
Abr 12

Um cachimbo com asas

abraçado a uma pomba tricolor

uma fogueira sem brasas

que beija as pétalas de uma flor

 

um cachimbo com asas

mergulhado no oceano do cansaço

um cachimbo rasca

à rasca

na sombra de um abraço

 

sem brasas

o cachimbo adormece sobre um livro doente

o cachimbo é eterno e infinitamente mente

com asas

 

um cachimbo prateado

cansado

moribundo

coitado do “Edmundo” (e não conheço nenhum)

chega a casa e sente

os gemidos do cachimbo doente

que infinitamente mente

que infinitamente com asas

em brasas

os lábios da sua amante

prateado

coitado

 

coitadinho do cachimbo

no limbo

sem sorte

à espera pacientemente da morte

coitado

deitado

 

com asas.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:33

A esta miséria viver

a que chamam de vida sofrer

 

caminhar numa rua sem saída

 

a esta miséria viver

quando escrevo um poema sobre o mar

a que chamam de vida sofrer

a que chamam silêncio de amar.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 11:52

28
Abr 12

Nas paredes curvilíneas da memória

poiso os meus braços de prata

acaricio pacificamente

os meus lábios de incenso

e as pinceladas do meu rosto

vagueiam livremente no vidro transparente

de linho amanhecer

antes do pequeno-almoço

 

oiço a tua voz misturada

nas acácias do fim de tarde

oiço-te enquanto me olho nas paredes curvilíneas da memória

sem palavras sem estória

 

sem nada

 

poiso os meus braços de prata

acaricio pacificamente

os meus lábios de incenso

e nas pinceladas do meu rosto

acorda a madrugada

cresce uma rua sem saída

suspensa numa cidade imaginária

com muitas portas e janelas

e calçadas

e velhos que se esqueceram de acordar

e fingem orgasmos pulmonares

e constroem a felicidade

num vão de escada

sem nada

com barcos mergulhados

em oceanos testiculares

 

sem nada

 

de mão dada

às paredes curvilíneas da memória

os meus braços de prata

pacificamente acariciados

felizes

contentes

tal como os velhinhos

num vão de escada

 

sem nada...

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:50

Havia sorrisos nos livros que eu lia

havia palavras nos sorrisos

nos livros que eu lia

havia

 

manhãs em desespero

dias intermináveis

sem sonhos

sem poesia

 

havia

 

(um rio que se despedia

nos livros que eu lia)

 

havia sílabas

e vogais

e jornais

com palavras intermináveis

e desenhos de algodão

e outras coisas mais

 

havia

 

(um rio que se despedia

nos livros que eu lia)

 

e morreu

antes de nascer o dia...

publicado por Francisco Luís Fontinha às 12:57

27
Abr 12

De quem são os silêncios que habitam na minha cabeça, de quem são as árvores que fazem sombra no jardim invisível da tarde, e de quem são os barcos que adormecem no oceano testicular do desejo,

- não chove e lá fora um fio de medo atravessa as mãos silenciosas da noite, o medo, que o dia se transforme infinitamente grande, infinitamente azul, infinitamente ausente, dentro de mim

“o medo morreu em 1974” Alguém suspende numa janela um pedaço de cartão, o medo de ser feliz, o medo de amar livremente as flores, as árvores e as gaivotas,

- dentro de mim ausente a sinfonia do cansaço, sento-me sobre as acácias em flor, e oiço uma voz “ainda ele brincava no oceano testicular e já eu estava preso”, e tantas coisas que brincavam nos oceanos testiculares da insónia e hoje, e hoje o medo atravessa as mãos silenciosas da noite, antes do limite indefinido da memória, antes do circo ter aportado no cais da aldeia e uma trapezista zarolha de mini-saia e avental vermelho a impingir amêndoas e beijos cor de laranja, Não percebo digo-lhe eu, O que é que não percebe pergunta-me ela, não percebo nada de amêndoas e de beijos cor de laranja, Experimente diz-me ela, Não quero experimentar digo-lhe eu,

e eu confesso que tinha medo, tinha medo de entrar na escola e saber que dentro da gaveta da secretária carunchosa adormecia a menina dos três olhinhos, “E foda-se que doía como o caraças e a mão ficava dormente o resto da tarde”, e os meus pais tinham medo e pediam a deus que eu parasse de crescer e ficasse eternamente com oito anos, Maldita Guerra Ouvia-lhes às vezes na solidão da noite,

- e felizmente que eu não parei de crescer e felizmente que a Maldita Guerra terminou, e felizmente que eu deixei de ter medo, e felizmente que o medo morreu em 1974, e felizmente que a sinfonia do cansaço hoje não veio ter comigo, e felizmente

Maldita guerra e enquanto eu me sentava no portão da entrada a contar os carros em direcção ao Grafanil, homens morriam, jovens, muito jovens, morriam, enlouqueciam, e felizmente,

“o medo morreu em 1974”,

- e felizmente que eu cresci e não fui para a guerra, e felizmente que os silêncios que habitam na minha cabeça não têm dono, são da terra de ninguém, e felizmente que a minha terra ficou livre, e felizmente que o mar é de todos e a poesia é de todos, e a terra é de quem a trabalha e o fruto é de quem o colhe, Assim ficou escrito na cartolina sobre a horta embriagada do meu vizinho,

o medo morreu, o medo...

no oceano testicular da insónia.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:09

Sonhos impossíveis

amores risíveis (o livro dos amores risíveis, Milan Kundera)

palavras dispersas

no papel achatado pela solidão da manhã

sonhos parvos em cabeças parvas

letras

muitas letras e palavras

coisas sem nexo

sonhos

impossíveis

amores risíveis

sexta-feira sem sol

e chove

e coisas dentro de mim

e coisas...

… sonhos

 

sexta-feira

sem livros

sem letras

sem palavras

na algibeira

 

sonhos impossíveis

 

sem palavras

sem letras

 

amores risíveis

amantes complexos

em quartos caquécticos

 

coisas

muitas coisas

muitas coisas suspensas na parede

muitas coisas suspensas na parede da solidão

 

antes de terminar o dia.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 11:49

26
Abr 12

Segunda-feira

a caneta pesada

terça-feira

a caneta cansada

quarta-feira

a caneta deitada

(excito-a e nada)

quinta-feira

a caneta começa a escrever

e na sexta-feira

sem eu saber

a caneta desmiolada

manda-me foder

 

(que saudades do tinteiro e do aparo)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:17

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