Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

29
Nov 12

a velha máquina de escrever sussurrava sílabas contra os vidros indefesos da janela com vista para o jardim, nua, a candeia zarolha e com um dos bracinhos engessados devido à estrondosa queda sobre o soalho sem tempo para escrever os ais e os uis no tecto da cozinha, nua, a candeia zarolha que comia as sílabas vomitadas pela velha máquina de escrever, comunista, ela, a máquina, fabricada na ex-URSS com a impressão a quente das inicias CCCP, das poucas caricias ouviam-se na lareira os estilhaços doentios do meu pai

 

- tem cuidado que as gajas

 

embriagado, sempre dentro do taparuer metálico onde escondia os cigarros e o álcool e em pequenas porções de saliva misturava na mão trémula pedacinhos de areia branca, snifava o açúcar desperdiçado nas chávenas do café e do chá e dizia que o excesso de açúcar

 

- tem cuidado com as gajas porque o excesso de açúcar provoca a diabetes e tem de ser snifado, se o engoles juntamente com o café ou com o leite, tem cuidado, com as gajas em voos sobre as oliveiras entre sombras e prostitutas do passeio com ardósias encarnadas e bâton labial, estavas linda,

 

hoje ouvi dizer que ia ser proibido ser louco, e que os loucos semeados nas jangadas de deus, iam deixar de serem loucos, por Decreto-Lei termine-se a loucura e a pobreza, felizmente pertenço aos dois e passarei a ser livre, Ouvia-o murmurar no quarto agarrado à porta do guarda-fato,

 

- está bem pai?

respondia-me que sim Na boa, mais feliz não posso, mas olha, tem cuidado com as gajas nascidas em Janeiro, as pessoas olham-te como se fosses um monstro porque és meu filho, pertences-me, tal como eu pertenço-lhes, nasci louco, irei morrer louco, e é tão lindo o mar quando desce do tecto, quando juntamente com a candeia zarolha me vêm visitar, dou-lhes um simplificado beijo cambaleado em palavras de merda, hoje não me apetece ver-te, hoje não me apetece falar-te, e no entanto, e no entanto gosto muito de ti,

 

e claro nada bem, não estava e nunca esteve bem, via-se quando se pegava na fotografia tirada momentos antes de começar a envelhecer, o cabelo fervilhava no cacimbo em camisola de alças e das barbas pergaminhos suores da chuva miudinha quando se ausentavam as gaivotas dos mastros moribundos, aos poucos começou a tropeçar na sombra das mangueiras, raramente sonhava, gritava pelo meu nome sem perceber que eu já não vivia ali, eu uma múmia enrolada nas páginas de uma lista telefónica, aproveitava para telefonar à Arminda, folheava a lista, nada, perdia-me completamente nas sombras das malditas mangueiras, tal como ele, desisti

 

- tem cuidado com as gajas porque o excesso de açúcar provoca a diabetes,

 

desisti de deambular pela cidade embrulhado em paginas de uma lista telefónica, folheava, folheava, e quando chegava ao ARM saltava para o BR, faltavam-me páginas, sempre, nunca percebi a ausências de algumas páginas que durante a minha vida desapareceram, umas em Angola, outras, outras em Lisboa, e outras..., entre parêntesis do vento loiro que às vezes beijava loucamente a candeia zarolha,

 

- nascidas em Janeiro, os destroços do mármores que alguns constroem sobre a sepultura da alegria, cuidado com elas, as gajas nascidas em Janeiro e com flores esdrúxulas na lapela, cuidado com as gajas com o coração de xisto e pedaços de socalco nos seios, Está bem pai?, e não estava, e nunca esteve desde que ouvia-o murmurar no quarto agarrado à porta do guarda-fato, olhava-se no espelho e do outro lado um palhaço com uma cabeça de xisto, e cuidado com as gajas, com elas, e pedaços de socalco nos seios, amanhece, é dia, a candeia transparente habita sobriamente no soalho da casa louca habitada por loucos, e por Decreto-Lei acabe-se com a loucura e com a pobreza, e serei livre como os pássaros que brincam nos plátanos das traseiras, as janelas sem grades, o almoço despido de drágeas, menino Francisco a mãozinha, coitado de mim, ausente, perdido entre páginas de uma lista telefónica, abro a mãozinha e o velho com a barba mergulhada no suor do capim grita-me FRANCISCO POR DESCRETO-LEI FOI BANIDA A LOUCURA E A PROBREZA, não acredito, é impossível, é verdade rapaz, e claro que não era verdade porque à minha volta existiam grades de finíssimos fios de luz, cambaleados os medos desenhados pela tua mão enquanto beijavas a candeia zarolha,

 

tão longe a tua mão de velho marinheiro sentado no cais imaginário dos barcos de esferovite, éramos novos, crianças, e era a primeira vez que víamos um barco com motor, e às voltas no tanque onde as mulheres passavam as tardes a pentear a roupa suja da semana, metias a mão na algibeira, tiravas duas pilhas, colocavas-as na parte traseira e ele desaparecia na neblina do sabão esbranquiçado que a pobreza construía nas tardes de Inverno, e ele

 

- tem cuidado que as gajas,

 

em círculos de revolta em revolta até pegares nele, retirares-lhe as duas pilhas e ele adormecia enquanto tu ias docemente encontrares-te com a candeia zarolha com os bracinhos engessados, nos lábios o bâton silábico das manhãs de ausência, cambaleados todos os desejos da infância, ao teu lado, o meu pai

 

- tem cuidado com as gajas nascidas em Janeiro,

 

porquê pai pergaminho rasurado embebido em fotografias completamente abandonadas no alpendre de madeira mutilada pelas balas transparentes da húmida vila transmontana, e sabia que a minha mãe

 

- a brincar às escondidas com uma criança que eu nunca conheci,

 

endoideceram as acácias e as amoreiras e todas as mangueiras que os meus olhos viram durante as tardes, porquê pai?

 

- FRANCISCO POR DESCRETO-LEI FOI BANIDA A LOUCURA E A PROBREZA,

 

e nunca mais voltamos a brincar com os barcos de esferovite.

 

(texto de ficção não revisto)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 00:22

Verdes olhos que o espelho da noite constrói

os meus

nas cinzentas fitas de mel

sobre as árvores cansadas e teus

braços o fogo destrói

as finíssimas estrelas de papel

 

malvadas distâncias entre as duas margens encalhadas no vento

não pontes nem barcos nem as palavras badaladas

debaixo do céu

não me oiças quando descem as madrugadas

e as janelas mergulham no salgado sofrimento

da leitura Cartas Ao Léu (Luiz Pacheco)

 

verdes olhos que o espelho da noite constrói

no momento vácuo dos versos a dois

em teu corpo desenho a manhã penhorada

pois

que nas pedras a dor se mói

e o mar se esconde na tua boca doirada...

 

(poema não revisto)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:35

A cena passa-se dentro de um carro

uma avenida despida

duas miúdas giras

e um charro

o charro come o carro

e sem roupa

a avenida

finge orgasmos no rosto das miúdas giras

eu estou sentado

na pastelaria

à janela

à deriva

espero espero e espero

e ela não vem

e ela sentada invisível na minha mesa

choram choram choram as luzes cansadas do silêncio meu destino

as duas miúdas giras

e um charro

dentro de um carro

à deriva na avenida

sem roupa

despida

que puta a minha vida

sem carro

sem miúdas giras

que fingem orgasmos no rosto do charro

que puta

a minha

que puta de vida esta de estar sentado na pastelaria

abandonado

nos cornos da avenida...

nua

tua

perdidamente despida

a avenida Sá Carneiro.

 

(poema não revisto)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 13:03

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