Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

07
Dez 12

Mandaram-me sentar na sala dos espelhos, não me sentei por razões de desobediência, não gosto, detesto, e o meu irmão

 

- de espelhos?

 

não parvalhão, o problema não são os espelhos, mas simplesmente não gosto que me obriguem a sentar quando me apetece ficar de pé, não gosto, detesto, não gosto das noites sem música, não gosto das noites sem livros, e não gosto das noites quando o meu mano querido se disfarça de alfinete de dama, e dou com ele agarradinho à minha lapela, com medo de cair, o meu querido mano

 

- de espelhos? De espelhos, às portas, de mesas compridas com cadeiras muito altas, de corredores e no final dos carris a casa de banho, a sanita, o vide e a banheira, o solitário lavatório, e uma janela com vista para o pátio das perdizes envenenadas pelos professores de literatura, os livros poeirentos empilhados até ao tecto onde de vez em quando uma trapezista aposentada desenferruja as cartilagens recordando alguns dos números praticados no bar dos morcegos quando disfarçada de gaivota voava sobre as mesas semeadas de gajos embriagados, com minhocas esfomeadas suspensas dos lábios de aço,

 

a noite é triste, Ouvia-o segredar-me ao ouvido, agarradinho à minha lapela e sentia-lhe o aço das mãos de pérola dos mares clandestinos, a minha mãe

 

- perdi o teu irmão numa noite de tempestade, Viste-o, não lhe respondi, nunca tive coragem de lhe dizer que ele se tinha transformado em alfinete de dama e que vivia agarradinho à minha lapela, coitada, ainda hoje, na sala dos espelhos, ainda hoje na sala dos espelhos ouvem-se aqui e ali ou acolá algumas delas, em gotinhas ou drageias, e maldita próstata, para a diabetes, corações apaixonados, ou partidos, ou despedaçados, chás, drageias, tudo que eu precisava à distância de um clique, próxima paragem Cais do Sodré, a noite, tua, vestida de tempestade, viste-o?, e pergunto-me porque tenho de me preocupar com um irmão que nunca tive, e pergunto-me porque tenho de me preocupar com um irmão que nunca vi, apalpei, toquei

 

nos teus braços minha querida quando descias o Chiado,

 

- o meu querido mano a olhar os barcos de papel e a contar quantos pássaros tem uma tarde em Lisboa, milhares dizia-me ele

 

muitos, e alguns andam disfarçados de candeeiros e quando regressa a noite da cidade dos espelhos com salas com paredes de espelhos, com a minha mãe a afagar um alfinete de dama pensando ser o meu irmão, eu

 

- ele na janela do perfume, o gesso em cio nas árvores mortas pelo cansaço da maré

 

eu não percebendo que um alfinete de dama raramente é gente, homem, irmão, companheiro ou amante, mas ela

 

- eu acredito em ti meu filho,

 

o meu irmão

 

- qual filho?

 

 

eu não percebendo que um alfinete de dama raramente é gente, homem, irmão, companheiro ou amante, mas ela descia o Chiado, viste-o?, e pergunto-me porque tenho de me preocupar com um irmão que nunca tive, e pergunto-me porque tenho de me preocupar com um irmão que nunca vi, apalpei, toquei, como as persianas da insónia quando cismam em não desaparecerem das noites sombrias do silêncio adamastor que o meu irmão inventado e disfarçado de alfinete de dama me perguntava, o meu irmão perguntava-me

 

- qual filho?

 

o meu irmão incrédulo na minha lapela e ela, e ela descendo o Chiado acreditava que tinha um filho, eu, ele, ela, Qual filho? Entre as ruas desabitadas da cidade iluminada pelos faróis clandestinos que o inverno semeia nas planícies da loucura,

 

- nos teus braços minha querida quando descias o Chiado,

 

mandaram-me sentar na sala dos espelhos, não me sentei por razões de desobediência, não gosto, detesto, e o meu irmão adormeceu sem me dar um beijo, sem que eu o tocasse ou simplesmente o olhasse, não se mexeu, cerrou os olhos de metal e desapareceu na claridade das estrelas de vidro.

 

(texto de ficção não revisto)

 

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 00:07

Acordando as sílabas dilatadas que das árvores de deus

descem melancolicamente os guindastes húmidos da paixão

há uma janela em desejo

que uma abelha pintada de vermelho atormenta

quando a insónia do crucifixo de prata

entra no corpo cansado do jovem com olhos de luar

há um corpo dentro do corpo do jovem

com olhos de luar

há uma janela

uma abelha

um silêncio de luz

nas paredes frias dos teus lábios ensonados,

 

acordando sílabas

enquanto a noite desenha em ti os fluídos da astronomia

dilatadas que das árvores de deus

há uma janela com acesso ao sótão do medo

há coisas nas mãos do medo

que eu tenho medo de prenunciar

gritar

escrever nas paredes invisíveis do quarto escuro com tecto de vidro

falsamente ignorados pelo jovem dos olhos de luar

acorrentados

todos

todas,

 

há ou não há não sei uma canção com sorrisos de leite

e mãos calejadas

que os montículos de lixo argamassaram nos calções de uma carta de amor

há ou não há

vai havendo rabanadas

gaivotas

e barcos travestidos de maré com cabelos de espuma em brando lume

a lareira

o ciúme

não há

vai havendo suspiros de iodo embrulhados em papel de chocolate.

 

(poema não revisto)

 

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:35

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