Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

21
Dez 12

Cortaste-me a cabeça oca como se eu fosse

(quem será a menina de tranças suspensa na prateleira dos sonhos...)

se eu fosse um comboio sem braços

com muitas poucas pernas de aço

acendias a luz e a noite desaparecia do cais das miseras galinhas chocas

enfadadas pelos atropelos das palavras

parvas

que a marmelada esconde na tigela doirada

 

cansavas-te curvada na roldana dos dias

quando das noites infernais

com os supositórios de vidro

à espreita agachados os uivos tristes da alvorada

ardiam os jornais

ardiam os orifícios curvilíneos das cancelas do palheiro

havia música nas tuas mãos de gesso

e brincavam

 

(quem será a menina de tranças suspensa na prateleira dos sonhos...)

será uma ela?

um ele?

coitado

coitada

não me interessam as tranças verdes da espuma que o mar saliva

contra os rochedos da paixão proibida

tristemente eu em pequeníssimas cabeçadas à areia ardida

 

perdida

tu

eu

perdido

sem tranças

com tranças à janela do vento

sinto

quando me sento

 

o quê?

Como

porquê?

assim não dá

(quem será a menina de tranças suspensa na prateleira dos sonhos...)

não sei talvez um dia

as asas das gaivotas sejas alegres

como a minha tristemente cabeça oca

 

(se eu fosse um comboio sem braços

com muitas poucas pernas de aço

acendias a luz e a noite desaparecia do cais das miseras galinhas chocas)

 

o galinheiro alimentava-se das tuas palavras

doces lábios do doirado orgasmo da tigela louca

descia a ti de ti

a marmelada macia que

cansavas-te curvada na roldana dos dias

quando das noites infernais

com os supositórios de vidro

a janela do teu ciúme abre-se aos beijos dos papagaios de papel.

 

(poema não revisto)

 

@Francisco Luís Fontinha

 

P.S.

(cansavas-te curvada na roldana dos dias

quando das noites infernais

com os supositórios de vidro)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:28

Obviamente não foi embora, e três dias depois, quase noite, encerrou-se dentro de uma caixa de vidro, puxou o cortinado, acendeu o cigarro, e sem hesitar, entre coices e telas em acrílico que tinha acabado de destruir e deitado fora, finou-se, morreu, e só teve tempo de cruzar os braços em abraços, e

 

sem hesitar,

 

desapareceu entre as sombras abstractas que a morte inventa no tecto das casas com sótão, escadas em madeira, e janelas sobre as outras casas, também elas, em madeira, e luzes fanadas a outras casas, a água desviada silenciosamente da casa do vizinho, e com duas galinhas, e com alguns coelhos, e poucos

 

sem hesitar,

 

galos de crista encarnada, os cornos do peru, as hastes mestras das cabras, as ovelhas em gemidos, e logo temos queijo fresco e legumes, e sandálias de couro com calções de chita, e sem hesitar

 

obviamente não foi embora, eu

 

sem hesitar,

 

desapareci entre as sombras abstractas que a morte inventa, e poucos

 

porcos de crista encarnada, galos com cornos e perus com asas de papel e hélices em fibra de vidro, e poucos

 

sem hesitar,

 

eu

 

sem hesitar,

 

desapareci entre as sombras abstractas que a morte inventa, e poucos ou nenhuns pássaros sobre o meu cadáver acetinado, as unhas de gel que a menina do rés-do-chão desenhou nas minhas mãos por vinte aéreos, poucos

 

eu

 

sem hesitar,

 

queria ser como tu, terça-feira disseste-me que não, e agora dizes-me que sim, que há pássaros no quintal à minha espera, e que depois de se extinguirem todas as lâmpadas das mesas de vodka, tu puxas de um cigarro, acendes o cortinado, e em coices desapareces nas telas em acrílico que brincavam na torre de controle do aeroporto da Chã, a pista longínqua, o último grito da aviação comercial, o pássaro Galileu em poucas palavras faz-se à pista, e há pista senhores excelentíssimos passageiros, há pista, os carrinhos de choque

 

eu

 

sem hesitar,

 

aos saltos e pulos e voos pegajosos e nojentos para não acordar a vizinhança pela manhã quando era domingo, e tu, hoje, terça-feira disseste-me que não, e agora vejo-te aos círculos na cama com lençóis de mar, há pista, poisas os pezinhos sobre a almofada, abres em noite de estrelas as asas dos desejos nocturnos, rolas silenciosamente pela pista, há pista, há pista senhores excelentíssimos senhores, à pista encostas as mamas e adquires estabilidade, da torre dizem-te

 

sem hesitar menina, vento a dez nós, sem hesitar, endireitar o nariz e os lábios, e não esqueça o púbis cansado e aerodinâmico das canções de Natal,

 

vens bem, pensava eu, enquanto te observava a percorrer a cama pela manhã, vens bem, e aterravas nos meus frágeis braços de alumínio,

 

obrigado senhores excelentíssimos passageiros,

 

aos seus destinos,

 

sem hesitar,

 

caminhava pelas ruas, puxava do cortinado e acendia o cigarro, sentava-me sobre os fardos de palha que todas as manhãs acordavam à porta do tio Joaquim, há porta, janelas, há janelas nesta casa travestida de sótão?

 

eu

 

sem hesitar,

 

mentia-te, e dizia-te que a pocilga onde vivíamos era um sótão com escadas de madeira, e janelas sobre as outras casas, também elas, em madeira, e luzes fanadas a outras casas, a água desviada silenciosamente da casa do vizinho, e com duas galinhas, e com alguns coelhos, e poucos

 

sem hesitar,

 

porcos de crista encarnada, galos com cornos e perus com asas de papel e hélices em fibra de vidro, e poucos,

 

que tu acreditavas.

 

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:24

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