Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

26
Dez 12

Roubo às palavras ditas

palavras escritas,

 

a melancolia

quando acordo não percebendo que acordei

e tropeço nas areias húmidas das rochas incendiárias

e não sei que o dia compreendia

a enormíssima porcaria

de fato e gravata

que é o doutorado diabo

em silêncios mergulhado

torturado por uma velha de mãos efémeras em cio

com um sorriso na veia

maldita mulher que o vento semeia

nas coxas exaustas das tempestades de areia,

 

Roubo às palavras ditas

palavras escritas,

 

e eu sabia

que um dia

me fodia

acreditando nas palavras desertas

hirtas e difusas

e eu sabia

que um dia

um velho dia

ele vinha

me pegava

e me levava

até aos confins olhos das amêndoas que jazem nas cinzentas lajes do oceano,

 

Roubo às palavras ditas

palavras escritas,

 

e sento-me sobre as nádegas do amor

sou feliz

talvez

um pouco

muitas vezes dentro de um prato de sopa

a tua simples madrugada

em gaivotas voadoras

loucas

que a tua boca de papel amarrotado

dissimila

e deita-se nas celestes luzes das cidades de vidro

a dita palavra escrita dita roubada em quatro segundos de voz,

 

P.S.

Roubo às palavras ditas

palavras escritas.

 

(não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:27

25
Dez 12

Sentia-me confusa, tremiam-me as pernas, dos braços, meus, claro, um pedaço de raiva remexia-se convulsivamente, e olhavam-me pelo interior dos cortinados de noite, que forçosamente cerravam as janelas do castelo da senhora dos grandes milagres, onde, desde que me recordo, vivi, cresci às mãos de uma religiosa meio louca, surda, que tinha alguns tiques, um deles, enquanto falava comigo, metia as mãos nos bolsos do meu hábito encarnado com listras azuis, e quando me apercebia, já alguns do objectos que eu transportava jaziam nas mãos dela,

 

Desculpa-me minha filha, mas faço-o sem perceber,

 

Usava um lenço de papel pardo ao pescoço, fumava às escondidas, e tenho uma leve sensação que gostava de mim, não o gostar como quem gosta de uma filha, gostava no outro sentido, quando pela noite, descia a Almirante Reis e numa das pensões de hora e meia, entrava, despia-se, e no silêncio da noite convulsivamente, construía barcos de madeira prensada que posteriormente um velho marinheiro utilizava quando ia em sonhos até alto mar e cismava que tinha pescado uma menina loira com olhos verdes,

 

Tinha um amante o teu pai,

 

Fui literalmente pescada por um marinheiro em alto mar, numa noite de tempestade e no intervalo de puxarem as redes e de ele atafulhar o cachimbo de prata com ópio, e enquanto acendia, e enquanto não acendia, e apagava-se, e novamente acendia, o adjunto do mestre foi içando as redes, até que

 

Comandante, comandante, temos um grave problema, e enquanto ouvia o adjunto pensei logo que tivesse sido o Francisco que caísse à água, pois quase sempre andava embriagado, gritei, O que foi adjunto?

 

Um amante?

 

Temos na rede uma menina loira com olhos verdes, pensei, Está ele também bêbado, maldito vinho..., e olhei

 

E não queria acreditar, pensei que fosse do ópio, mas percebi que não, era mesmo uma linda menina, raios, e agora? Que vão dizer os meus amigos? Que fosse do ópio, não, era mesmo uma linda

 

Tinha um amante o meu pai?

 

Que era pintor e usava sandálias de couro e vestia calções com mesquinhas letras transversais, e lia Proust, e nunca

 

Lhe perguntei o significado do amor, sentia-me confusa, tremiam-me as pernas, dos braços, meus, claro, um pedaço de raiva remexia-se convulsivamente, e olhavam-me pelo interior dos cortinados de noite, que forçosamente cerravam as janelas do castelo da senhora dos grandes milagres, a irmã Margarida, pede um desejo

 

E eu sem hesitar, abraçar o meu pai, tocar-lhe no cabelo indefeso que a própria idade lhe desenhou na cabeça, pegar-lhe na mão, sentir o cheiro

 

Do cachimbo do teu pai adoptivo?

 

Que era pintor e usava sandálias de couro e vestia calções com mesquinhas letras transversais, e lia Proust, e nunca

 

Tinha um amante o meu pai?

 

E nunca me desejou

 

Até que o mar me levou.

 

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:53

A casa louca às quatro paredes invisíveis

que o deserto africano constrói

sobre o cansaço adormecer de uma árvore voadora

e a triste saudade que uma simples folha de papel tece

na boca inocente do morcego

há noites que comem as outras noites incompletas pela imensidão arte do esconderijo

sôfrego

sofrido mendigo do prazer amigo

 

há ainda noites

separadas

amantes

dramatizadas

viúvas

casadas

 

doentes

sofridas marés de solidão

que os barcos do desejo rompem

esmagam

nas planícies faces xistosas da pele de uma abelha

à procura desenfreadamente pelo regresso das vozes de granito

 

não sei

eu

a casa de ramos e esterco empilhados sobre as camas do abismo

janelas sem guardião

portas de entrada sós

uma mulher com asas

não sei

eu

 

na fogueira mãe abraços

em brasas de sémen do tecto do palheiro

as teias de aranha cinzentas empobrecidas pelo fumo do cachimbo de prata

lata

que a noite comida pela noite anterior

deixou ficar

abandonada

sobre a mesa de quatro patas

o amigo o cão amigo de areia

à espera do mar que incendeia

que semeia os penhascos incensos do amor proibido

a lata inseminada pela cerveja fumegante dos espíritos às insónias molduras

 

quatro simples fotografias

eu

ele

ela

e a manhã em que me despedi de Luanda...

 

 

(não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:39

24
Dez 12

Achas-te superior

indigente

com falta de amor

como muita gente,

 

achas-te superior

rainha das coisas boas

montanha de luz

achas-te uma flor

uma simples flor

com pernas de cansaço

e braços

aos abraços

oiço o balançar da porta de entrada

truz truz truz

ninguém será certamente para me dar nada

nem uma simples corda de aço,

 

um prato com sopa de legumes encarnados

vinho do porto velho como os pássaros com asas de mar

(achas-te superior

indigente

com falta de amor

como muita gente)

e às vezes

multiplicam-se as manhãs de inverno

cresce o inferno

maré de marinheiro

quando eu sentado no barbeiro

penso solitariamente nas nuvens de barbear,

 

sinto-te em espuma no meu rosto envelhecido

e das saudades

as pequenas saudades

correr amar correr livremente

e voar

e amar

voar até cair nos teus braços

abraços

uma corda de aço

do tão construído cansaço

a espuma de ti mergulhada no meu simples desenho da alvorada

e tão triste e tão só tudo aquilo que foi esquecido,

 

achas-te superior

indigente

com falta de amor

como muita gente,

 

mas continuarás a ser uma resma de palavras

sem nexo

moribundas quando a mergulhada canção de amor

não é uma flor

é uma canção

que sofre

que dói

e mói

as pedras finas da calçada dos amores proibidos

e dói

mói

a doçura tristeza do desejo.

 

(não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:47

Suicidou-se nos meus braços,

 

Quatro filhos, um marido alcoólico, o amante constantemente com as primeiras cinco insónias da madrugada, um cão, um pássaro, que mais ela podia desejar?

 

Saía de casa por volta das 04:30 horas, ainda não tinha acordado o dia, levitava-se pela casa em bicos de pés, beijava na face cada um dos filhos, rogava uma praga ao marido embriagado e pensava nas primeiras cinco insónias do amante, pegava-lhe na fotografia ao de leve, e beijava-o docemente

 

Nos meus braços,

 

O cão sabia ler, o cão sabia escrever, e o pássaro

 

Nos meus braços,

 

Fazia a contabilidade da casa, organizava os jantares de família, digamos que ele era a governanta lá do sítio, cabisbaixo, de asas poisadas sobre a lareira dos sonhos, fazia contas, e quando chegava à prova dos nove

 

Foda-se a conta está errada,

 

Nos meus braços, os fósforos que a morte come quando de deita o dia, chega a casa cansado, desinteressadamente infeliz, faltava-lhe tudo, os rebuçados, as guloseimas, as amêndoas de chocolate e o caramelo Espanhóis que o contrabandista do zarolho oferecia todos os anos pelo Natal, felizmente já faleceu, e vimos-nos livres dos caramelos

 

O meu pai sempre disse, isto um dia vai acabar mal, nos meus braços, O cão sabia ler, o cão sabia escrever, e o pássaro

 

Enfaixado nos caramelos de Luz, chovia, o meu pai acordava todas as manhãs embrulhado em vómitos e crateras de sulfato de amónio nos lábios, acendia o cigarro da desgraça, o cão impaciente, o pássaro fodido, e a minha triste mãe de lágrimas nos olhos a escrever as queixas nas faces rosadas do amante, faltava-lhe qualquer coisa

 

Nos meus braços, suicidou-se ao entardecer,

 

E o meu pai sempre disse, isto um dia vai acabar mal, nos meus braços, o cão sabia ler, o cão sabia escrever, e o pássaro não resistiu aos salpicos das garras do gato do vizinho que aproveitando a janela da cozinha entreaberta, zás..., fodeu-lhe o pescoço

 

Enfaixado nos caramelos de Luz, chovia, o meu

 

Foda-se a conta está errada,

 

Docemente a beijava, sem perceber que a casa ardia na fogueira da paixão, os meus queridos irmãos

 

Suicidou-se nos nossos braços,

 

Eu

 

Caminhava com quatro filhos, um marido alcoólico, o amante constantemente com as primeiras cinco insónias da madrugada, um cão, um pássaro, que mais posso desejar?

 

A morte,

 

O gato constrói um arroto que todo o prédio presenciou sonoramente, na Antena 3 desenhava-se o Planeta 3 nas falsas palavras dos livros dele, os uivos, os gemidos, os milagres concedidos à minha querida mãe, e que hoje partilha uma assoalhada bem lá no alto

 

A morte de um orgasmo,

 

Bem lá no alto, No céu?

 

Os meus três irmãos os estúpidos de sempre, engasgados nas asneiras da literatura vendida no vão de escada, subia-se, subia-se

 

No sexto andar seus parvalhões,

 

Subia-se até que chegávamos ao céu,

 

Eu, três irmãos, a minha querida mãe melancólica, o meu paizinho sempre embriagado, o amante da minha mãe constantemente à procura das cinco primeiras insónias da madrugada, um cão, um pássaro, que mais eu podia desejar?

 

A morte de um orgasmo

 

Na cabeça da lua, nos braços

 

Bem lá no alto, No céu?

 

Suicidou-se nos meus braços sem perceber que eu era um cadáver ensonado que de jardim em jardim, que de embarcação em embarcação, que de autocarro em autocarro (riscar autocarro porque estão em greve), que de papoila em papoila

 

Bem lá no alto, No céu?

 

A morte de um orgasmo depois do suicídio das lâmpadas de néon que todos eles utilizam no Natal,

 

A morte de um orgasmo

 

Na cabeça da lua, nos braços

 

Bem lá no alto, No céu?

 

Sim, no céu, os dias deixaram de ser dias, os dias, pequeníssimas folhas de papel voando sobre um ninho de cucos...

 

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 20:01

Festas Felizes

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:02

Todas as noites me afundo num oceano de saudade, mergulho, indefeso, procuro a sombra marítima que brinca dentro do meu peito, sem jeito para alguma coisa, todas as noites me afundo, de saudade, na saudade, viver sem saber o que é o medo, viver, sem saber... o que é

 

algum dia, qualquer dia, ouvirás as vozes que deixaram dentro da gaveta dos sonhos, as tuas mãos,

 

o que têm as minhas mãos pai?

 

as tuas mãos mergulham, todas as noites, de saudade em saudade, de peito em peito, foge-te o fôlego, as coisas belas morrem, afogam-se no oceano de saudade, às vezes, outras, nem por isso, e procuras-me dentro dos pinheiros mansos da floresta das mães abandonadas, as flores, as árvores, e todos os filhos das manhãs de inverno, aqui, agora, procuras-me e eu escondo-me

 

o que têm pai?

 

olhas-me no espelho curvilíneo da melancolia absorvida pela pele esbranquiçada de um esqueleto sem sono, penso

 

desfaço, não desfaço, e acabo por concluir que a barba é um acessório desnecessário, o cabelo tomba no jardim com os canteiros alinhados, o tapete, a carpete, alguns dos tacos devido à humidade levantaram-se, de pé, em tesão, e às vezes, e às vezes

 

o que têm pai?

 

tropeço, linearmente vou de encontro frontalmente contra as flores de cetim junto aos cortinados de linho, hesito

 

o que têm pai? Penso, e às vezes

 

pareço um pedaço da pano com remendos e buracos, como o telhado do palheiro, telhas em perfeitas condições, e telhas

 

o que têm as telhas pai?

 

e telhas com os membros inferiores fracturados, moribundas, que deixam passar as lágrimas do céu, as tuas mãos mergulham, todas as noites, de saudade em saudade, de peito em peito, foge-te o fôlego, as coisas belas morrem, afogam-se no oceano de saudade, às vezes

 

todas as noites me afundo num oceano,

 

todas pai?

 

todas, todas as noites.

 

(não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 12:07

23
Dez 12

Nasci numa aldeia cinzenta, e todas as pessoas traziam na cabeça uma flor de lótus, uma pequena ribeira caminhava sem destino entre os canaviais e os choupos velhos e caducos que viviam em comunhão de bens, felizes no casamento, tinham três filhos, duas raparigas, e eu

 

eu continuo sem saber o que sou,

 

as raparigas desde muito cedo começaram a fazer desenhos nas paredes da casa, um rés-do-chão enfaixado nas amoreiras e silvais que depois de cair a noite desapareciam como desaparecia o fumo dos cigarros do meu irmão, sisudo, chato, um travesti de trinta e dois anos, bancário, regressava a casa depois de um longo dia de trabalho, apanhava o eléctrico, contava as pombas até chegar à porta de entrada do prédio, entrava, começava a subir as escadas tranquilamente, no patamar do primeiro andar ainda era o Carlos, subia, subia, e quando chegava ao quinto andar,

 

agora sei o meu nome,

 

Maria Feliz, entrava em casa, descalçava os sapatos altíssimos e colocava as pernas sobre a mesa de mármore que jazia no centro da sala de estar, pegava no comando da aparelhagem sonora, carregava no PLAY e sempre o mesmo CD no seu interior

 

agora sei o meu nome,

 

Wordsong (AL Berto)

 

e ele,

 

ela,

 

tinham saudades dos tempos da infância quando apenas tinham como memória uma aldeia cinzenta, apodrecida, a madeira das traves e dos barrotes, de vez em quando, pingava um líquido sujo e espesso, e quando lhe passava o dedo e levava-o à boca

 

ela percebia que eram lágrimas com mel,

 

chovia dentro de casa, tínhamos um cão a que dávamos o nome de REX, e quase sempre o gajo desobedecia-nos, traquina, as raparigas desde muito cedo começaram a fazer desenhos nas paredes da casa, um rés-do-chão enfaixado nas amoreiras e silvais que depois de cair a noite desapareciam como desaparecia o fumo dos cigarros do meu irmão, e nós deliciávamos-nos com os poemas

 

eu continuo sem saber o que sou,

 

ele

 

sisudo,

 

ela

 

levantava-se do sofá, acabava de despir-se, e quando se olhava no espelho e percebia que não tinha sobre si outra qualquer roupa, nem vestígios dele, corria até à casa de banho, abria a torneira da água quente, deixava-a borbulhar como uma panela ao lume com estrelas e pedaços de néon, e aos poucos e silenciosos sonhos do mar, começava numa carícia intensiva, até se cansar, até perceber que ela era ela, até

 

ele

 

sisudo,

 

ela

 

ela percebia que eram lágrimas com mel que o seu corpo derramava como se fossem a seiva envenenada das árvores de papel, sisudo, e pendurava no armário o Carlos, e a lua apoderava-se dela, e a lua escrevia no corpo dela,

 

viste o Carlos?

 

ele

 

sisudo,

 

ele

 

chato,

 

ele, que todos os dias se levantava de madrugada, Maria Feliz ia ao guarda-fato, tirava o Carlos, vestia-se, raramente tomava o pequeno-almoço, deixa-a sobre a cama até que o cair da noite se agarrava às janelas do quinto andar,

 

sisudo,

 

agora sei o meu nome, agora percebo a cor da aldeia onde nasci, vivi, cresci..., e quase

 

morri,

 

ela

 

viste o Carlos?

 

chato, sisudo, as árvores que nem os malditos pássaros encarnados queriam sentar-se sobre elas, é triste, era triste a solidão dos dias, e percebia que as minhas irmãs

 

não gostam de mim, sempre me odiaram, viste o Carlos? Apenas palavras para os poucos transeuntes ouvirem, porque nas minhas costas

 

o Carlos é um chato, e sisudo, e

 

as ruas deixavam de pertencerem-me, e

 

ela

 

viste o Carlos?

 

e elas sempre souberam que nunca existiu nenhum Carlos, e elas

 

as raparigas desde muito cedo começaram a fazer desenhos nas paredes da casa, um rés-do-chão enfaixado

 

numa rua de Cais do Sodré, e quase

 

morri.

 

(não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:54

22
Dez 12

Quatro drageias de pólen embebidas em cianeto

para quatro homens de barro

mergulhados no poço da solidão

sem perceberem

 

eles

elas

nós

 

sem perceberem que o vulcão do silêncio morre lentamente

na mão malmequer do jardim abandonado

sem flores

quatro árvores de papel

 

um condenado

embriagado nas tuas palavras sem janelas para as rimas deixadas sobre a mesa

um prato de sopa

às cabeçadas entre as migalhas de pão

e a cozida cebola

que cintilam pedaços de pálpebras e corações grelhados com molho de paixão

 

amanhã vai estar frio

tem cuidado...

amanhã vai chover

não te molhes...

e ninguém

e ninguém me avisa quando vem a fome

e me diz

queres um prato com sopa?

 

uma folha de couve?

não senhor

não oiço

não bebo

não fumo

fodo às vezes quando calha

 

e quando calha

sou uma drageia de pólen embebida em cianeto

deitada sobre a mesa do pequeno-almoço

à espera

pacientemente

que um louco de barro me coma

e morra

e me leve para a montanha das quatro portas invisíveis.

 

(não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:24

Sou filha do vento e nasci num final de tarde, tenho cabelo loiro como o oiro, tenho asas como as gaivotas, em revolta, tenho olhos verdes com luzinhas encarnadas, como as madrugadas, depois de uma longínqua caminha na praia dos sonhos, sou filha

 

da vida quando construída, destruíste-me os ossos e fizeste deles sumo de laranja com rissóis de camarão, a tarde estava límpida, linda, brilhante, ausente a tua melancolia paixão pelos livros, da vida, e eu

 

sou uma filha da puta, destruíste-me cansada manhã, à luta, à carga que os costados ainda aguentam, sou burra, de velas arregaçadas até aos ombros, levanta-se o mastro luzidio da paixão, e ela

 

a caravela mais linda do oceano,

 

entre curvas e sombras,

 

e ela às marradas contra a porta de entrada, cinco da manhã, porta encerrada, fui despedida, lia-se na tabuleta míope

 

por razões de segurança é proibido sonhar,

 

filhos da puta, pensava eu, miúda da vida quando construída, destruíste-me os ossos e fizeste deles, e fizeste de mim

 

uma mula sem asas,

 

e fizeste de mim

 

uma caravela sem velas,

 

e fizeste de mim

 

uma puta sem pernas, sem nome, sem jazigo, caixão, cave, ou noite embrião, uma puta solteira, filha do vento, e nasci, e nasci num final de tarde, junto ao Tejo, numa esplanada com cadeiras, uma esplanada com mesas, plastificadas

 

os ossos, as pernas, as asas, as casas, eu

 

uma puta sem alicerces, segurança social, uma

 

casa sem janelas, um rio sem barcos, ponte, um jardim nu, moribundo, húmido entre as sílabas assassinas da primeira comunhão, que raiva, ódio, não gostava de gravatas, sapatos pontiagudos, e asas, e fatos de pano barato,

 

o cigano

 

estás bonito miúdo,

 

e ela,

 

sou filha da chuva, sou filha do vento,desculpem-me, ajudem-me, lancem todas as cordas para o mar, e numa fúria de raiva

 

salvem-me esta puta filha do vento,

 

uma caravela sem vela, uma puta sem pernas, sem braços, sem cabeça, uma árvore miúda, à lareira, feliz natal ouve ela

 

salvem-me,

 

porquê,

 

o cigano,

 

que giro, está lindooo,

 

e eu era lindo quando vestido de pedaços de xisto com laminados de madeira, o serrote em cuecas fugindo corredor fora, o barco enfeitiçado mergulhava nos olhos verdes da puta encarnada manhã de sábado, saí de casa, travesti-me de homem livre, como o vento, pai da puta, que no final de tarde, ouvia os roncos magistrais das bocas ocas e loucas que

 

o cigano,

 

que a maré provoca nos corpos quentes,

 

caliente meu corpo de cetim doirado,

 

o cigano,

 

lindooo,

 

eu sei, eu sei quando me olhava ao espelho,

 

as vaidades, as paredes guiadas pelas raízes dos finais de Outono, ouviam-se as transpirações das desejosas camas de vinte e cinco euros, à janela, há janela, uma fotografia com um miúdo nos braços do cigano

 

lindooo,

 

e eu respondia-lhe que os sapatos pontiagudos me magoavam, e ele

 

quando começares a voares passa-te, e deixam de doer,

 

lindooo,

 

que a maré provoca nos corpos quentes,

 

caliente meu corpo de cetim doirado,

 

o cigano,

 

lindooo,

 

e gemias, e atravessavas as paredes de porão em porão, descias as escadas até ao ínfimo milímetro de poço, e dizias-me

 

sou filha do vento e nasci num final de tarde, tenho cabelo loiro como o oiro, tenho asas como as gaivotas, em revolta, tenho olhos verdes com luzinhas encarnadas, como as madrugadas, depois de uma longínqua caminha na praia dos sonhos, sou filha

 

uma puta sem alicerces, segurança social, uma

 

casa sem janelas,

 

sou filha do vento, sou filha da chuva, sem braços, sem pernas, sem asas, sou

 

lindooo,

 

e nunca mais vi o cigano de camisola azul.

 

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:09

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