Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

31
Jan 13

Uma casa com quatro janelas voava sobre a manhã apodrecida que do Douro acordava, devagarinho, e aos poucos, pedaços milímetros de saudade subiam os pinheiros vadios e os pássaros bebés brincavam solitariamente com minhocas e azeitonas em compota, eu ainda não era nascido, e dizia-se baixinho que as paredes tinham ouvidos,

O vento era tão forte naquela manhã que tivemos de nos acorrentar aos poucos muros em xisto que sobejaram das tempestades de areia vindas do outro lado da rua, o quintal benzia-se e rezava, e um crucifixo de areia prendia-se voluntariamente a uma árvore enfeitiçada pelo silêncio do amor proibido, havia claridade suficiente para que eles se vestissem e zarpassem como barcos encapuçados fugindo da polícia politica que o Estado tinha inventado, e eu que ainda não era nascido não podia dizer que o Presidente do Conselho era

“Um grande filho da puta”,

Às vezes tinha medo da escuridão quando caia a noite em Luanda, olhava o céu nocturno e sentia os limites entre quatro parêntesis e a casa da aldeia com quatro janelas, em círculos procurava os ouvidos das paredes, e em vão

Nada, nunca os vi, mas apercebia-me que às vezes em nossa casa os adultos conversavam baixinho, e muito devagar, eu questionava-os, e eles diziam que eram conversas de adultos, perguntava-lhes porque só eu é que jantava e eles

Não temos fome,

Curiosamente, nunca tinham fome, e curiosamente hoje percebo que o faziam para que o jantar chegasse para mim, e eu que ainda não era nascido não podia dizer que o Presidente do Conselho era

“Um grande filho da puta”,

Como todos os Presidentes do Conselho de todas as ditaduras, e curiosamente

Não temos fome meu filho,

Mergulhávamos sonambulamente nos barcos com algarismos pintados com restos de tinta que uma lata de sardinhas trazia na algibeira, e quase tenho a certeza que o mar queria comer-nos, mas nós éramos fortes e estávamos acorrentados a um fio invisível de aço que prendia-nos a tenda de lona ao muro anão de xisto com artrose e percebia-se que da coluna vertebral vinha um perfume estranho, como as palavras que o rio reflectia antes de chegarmos ao mar, e a chuva tomava conta de nós, e a chuva misturava-se nas garras dos senhores residentes do Conselhos de todas as ditaduras, os assassinos

Também amam e sofrem de desamor, respondiam-nos eles quando viemos encaixotados dentro de uma casa com quatro janelas, atravessamos o oceano como pássaros dentro de uma gaiola de vidro, e quando regressava a noite eu ouvia-os

Não temos fome,

E eu sabia que tinham, e eu sabia que a casa com quatro janelas de vidro voava sobre a manhã apodrecida que do Douro acordava, devagarinho, e aos poucos, pedaços milímetros de saudade subiam os pinheiros vadios e os pássaros bebés brincavam solitariamente com minhocas e azeitonas em compota, eu ainda não era nascido, e dizia-se baixinho que as paredes tinham ouvidos,

E hoje sei que tinham, e hoje ainda têm,

Quatro janelas e voam sobre o Douro.

 

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:40

Todos eles me dizem e salivam nas paredes do orvalho

que eu não tenho coração

que eu sou uma nódoa num pano pornográfico

à janela do tempo indeterminado

oiço-os dentro dos buracos e respiram

e se alimentam nas vãs mensagens sem destinatário

não vou regressar

e recuso-me a absorver-me nas planícies que a paixão tece

e vagabundeia sabendo que às vezes

lágrimas

há lágrimas de chocolate

na aldeia do desejo,

 

há uma lareira com vista para o Douro

lá encosta-se e poisa a mulher mais bela

e ardem pedaços de videira

e se aquecem as palavras sem livros onde dormirem

e se aquecem abajures de linho

há uma claridade intensa

da paixão das almas e dos xistos com olhos de diamante

lá encosta-se a Deusa adormecida

como o Douro em cascatas até ao cimo da montanha

lá encosta-se o desejo de um coração de prata

com sabor a lilases flores que o Inverno atormenta

e a lareira não cessa de amar.

 

(não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:33

30
Jan 13

Me perdi, desencontrei, me amei e chorei por você, me perdi, e me cansei, me desorientei, tudo, tudo por você, sonhei, escrevi versos sobre a luminosidade das pálidas tardes que eu inventava para

Para você,

Inventei um sol e uma lua, construí jangadas de beijos e pintei

Para você,

E pintei o céu nocturno das planícies complexas dos orvalhos destinos em círculos de luz com olhos verdes e cabelo castanho, havia uma rosa dentro e um livro que eu roubei

Que tu roubaste num público jardim,

Que eu roubei de um silêncio de Primavera, para você, me perdi, desencontrei, e me amei

E chorei, inventei as loucas abelhas das paredes de xisto, e me cansei de procurar as ditas palavras do amor, me amei, e me apaixonei, tudo

Por você,

Amanhã serei um fio de solidão suspenso entre dois postes de iluminação, amanhã serei uma bola de neve com uma cenoura e duas azeitonas, muitos vão acreditar

E dizerem

Este é o dito António das névoas, homem de poucas palavras, desamado, desacreditado, este é ele, aquele que vocês diziam ter poderes mágicos na língua e que das mãos saiam versos, afinal, afinal este não é ninguém, por você

Amei, e chorei, e sonhei, e tombei

No pavimento térreo das amoreiras voadoras, tive sonhos e tive grandes loucuras sobre barcos com lentes de contacto, tive o céu ao meu dispor, e nada disso eu quis, não quero, detesto, as palavras do amor, os versos que escrevo, os versos que reescrevo, invento, a ventosidade, alimento-me das dálias masculinas e femininas dos jardins da Babilónia, e

Amei, e chorei, e sonhei, e tombei, da Babilónia para você

Um magnifico frigorífico a cores, uma máquina de café expresso, alguns livros e umas telas ranhosas que em horas vadias o dito António das névoas desenhou e pintou, tudo, tudo para você,

E hoje pergunto-me onde está ele? Nunca mais o vi, nunca mais ouvi os seus lamentos quando se sentava na varanda, quando puxava de um cigarro maroto, e desabafava palavras dele com as minhas palavras, quando misturava o fumo dele com o meu próprio fumo, e hoje

(Pergunto-me),

Amanhã serei um fio de solidão suspenso entre dois postes de iluminação, amanhã serei uma bola de neve com uma cenoura e duas azeitonas, muitos vão acreditar, outros nem por isso, há ainda aqueles que dizem ser eu uma aventura de rapazes meios loucos caminhando na margem esquerda do rio sem destino, e amanhã, onde estará ele?

Dizias-me que o amor era uma flor com pétalas de papel embrulhadas em perfume de amêndoa, a princípio pensei em chocolate, depois em camarão, verifiquei e lembrei-me

Desculpa filho, mas como sabes sou alérgica ao camarão,

E lembrei-me da dita rosa embalsamada dentro de um parvo livro, e pergunto-me, onde estará ele? E ela pergunta-se

Viste-o?

Pergunta-se porque deixaram de crescer as ervas à volta da eira, debaixo do canastro uma réstia de lâmina de amanhecer ainda resiste às tardes de prazer, como se os alicerces dos muros em betão que nos separam estejam prestes a ruir, e então

Deixo de perguntar-me

E também pouco importa, porque ambos estamos mortos, desde a manhã de Sábado quando o tejo entrou através das nossas janelas da paixão, e

Afogou-nos como duas barcaças de linho, e dizerem

Este é o dito António das névoas, homem de poucas palavras, desamado, desacreditado, este é ele, aquele que vocês diziam ter poderes mágicos na língua e que das mãos saiam versos, afinal, afinal este não é ninguém, por você

Amei, e chorei, e sonhei, e tombei nas suas coxas de diamante lapidado...

 

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:09

29
Jan 13

Dos ombros da prima Glória saltitavam os findos espaços que um suicidário amador deixou cair sobre os canteiros de rosas vermelhas, “cuidado – pintadas de fresco”, um silêncio transformado em palavras anunciava a morte do perfume melancólico que as devidas mãos de fábula exportam para os infindáveis Rossios das cidades suspensas na mesa número sete da esplanada com sombra para os defuntos organismos que a pura vaidade incendeia, plantas

Que o velho Horácio semeia,

Colhe,

O ressacado comboio dos sonhos amorfos, das palmas as palmas para o artista conceituado em turnê pelas janelas da rua do Alecrim, algures, neste país, algures num outro continente, há-de sempre existir uma rua como o nome de

Alecrim

Ou

Francisco qualquer coisa,

Tanto faz, dizias-me quando regressava a casa com a carteira esvaziada pelos vómitos e diarreias diárias, sentíamos o silêncio frio nas tardes de verão, e víamos, deambulando pela rua, homens, mulheres, crianças, todos, todas, elas e eles e eles e elas

Ou

A transpiração nocturna caminhando sobre um pavimento de alumínio entre duas bolhas castanhas, as flores dormiam, e tínhamos na algibeira meia dúzia de notas de vinte escudos enroladas como se fossem um tubo de queda, como os que se utilizam para escoar as águas pluviais quando torrencialmente chove, ou

Sentíamos os fluídos das madrugadas em flor entranharem-se nos orifícios vazios que um suicidário amador deixou cair sobre os canteiros de rosas vermelhas, “cuidado – pintadas de fresco”, um silêncio transformado em palavras anunciava a morte do perfume melancólico que as devidas mãos de fábula exportam para os infindáveis Rossios das cidades suspensas na mesa número sete da esplanada com sombra para os defuntos organismos que a pura vaidade incendeia, plantas, ou esperávamos pelo nascimento de um Francisco qualquer coisa

Ou, ontem, depois de encerrarmos definitivamente as mãos entrelaçadas nas sereias de amêndoa e darmos-nos conta que existiam rosas por pintar, mesmo lá no centro do canteiro 2B, no meio circunflexo, os sexos murchos das aldeias despidas pela solidão das noite em construção, a vaidade, quando vinha, não era para todos, e alguns deles, delas, deles e delas

Dormiam duplicadamente como os poemas incompreendidos que a avó Hortênsia escrevia antes de dormir, quando dormia, porque ela passava os dias e as noites e as horas e os minutos e os derradeiros segundos

Acordada,

E eu sabia que a velha era rija, como as pedras de Trás-os-Montes, e os pinheiros, e os pássaros e os homens, e as moças pintadas de vermelho, como as rosas de papel

“Cuidado – Pintadas de fresco”, e eu ouvia-as camuflarem-se no capim de ninguém, sabíamos, que os tubos de areia depois de mortos tinham dentro de si um líquido espesso, peganhoso como o mel, mas de cor diferente, pingavam pedacinhos de lágrimas de vidro, e continuávamos embrulhados nos suores frios das tardes de verão, e continuávamos embrulhados nas tórridas diarreias de insónia que as noites traziam de longe, estranhamente, sabíamos que os hotéis mórbidos das cidades com Rossios à deriva como um barco espetado num buraco negro algures no espaço longínquo, os quartos com casa de banho privativa arrumavam-se no quarto andar, e sobre nós, dormiam as clarabóias das estrelas sem futuro, e eu

Percebia,

E eu

Percebo,

Compreendo,

Não tenho dúvidas,

Ou

(E eu sabia que a velha era rija, como as pedras de Trás-os-Montes, e os pinheiros, e os pássaros e os homens, e as moças pintadas de vermelho, como as rosas de papel), que às vezes tinha sonhos que um velho de cabelo comprido e barba branca me roubava, e ficava sozinho, sem ninguém, à deriva sobre as alcatifas do oceano, aos poucos afundava-me, aos poucos deixava de ter força para remar contra as marés de inferno que o velho de cabelo comprido e barba branca não quis levar de mim,

Tínhamos

Ou

Já não sei como eram as nossas noites à lareira, já esqueci

E tão pouco me recordo das janelas de vidros riscados, as lentes dos óculos dormiam à cabeceira da avó Hortênsia, e confesso que tinha pena da velha, mas que podia eu fazer, nada, quase nada, e só depois do mel com sabor a qualquer coisas estranha, nós pensávamos que um Francisco vinha

E nunca regressou, e todos os tubos de areia morreram, e todas as bolhas castanhas morreram, e todas as notas de vinte escudos

Esqueci-me

E todas as notas de vinte escudos ainda hoje brincam na gaveta da mesa-de-cabeceira da avó Hortênsia, coitada, tão velha, mouca, e transporta um esqueleto virtual como peças sobresselentes compradas por um dos netos da última viagem à China, e tirando isso

Já não sei como eram as nossas noites à lareira, já esqueci os aviões e os barcos de papel, já não sei como eram as nossas noites à lareira, já esqueci os aviões e os barcos de papel e os papagaios de muitas cores que um cordel prendia ao portão de entrada de um quintal hoje fantasma,

Ouviam-se e deixamos de ouvir,

Esqueci-me

Como era o amor.

 

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:37

28
Jan 13

Atravessavas a parede imaginária que separava a minha manhã da tua tarde, para te encontrares comigo nos poeirentos e encharcados solstícios do desejo prometido, que a dor das palavras provocava na nossa janela, e sabíamos que no cimo das escadas de acesso à prateleira dos bonecos de trapos, tu, tu escondias as pequenas sílabas que a saliva desajeitada libertava em dias de calor, tínhamos uma armadilha para caçarmos livros de longínqua idade, tu, tu escondias-te às vezes juntamente com os bonecos de trapos, e eu, eu construía chapelhudos para um parvalhão de um miúdo que chamava chapelhudo ao boneco de estimação, e ao autocarro da carreira de machimbombo, e dizia que as bananas tinham bicho

Preenchíamos as tardes com indolentes cortinados de chita e caricias de amêndoa, lá fora ouvíamos o chilrear dos bonecos de trapos à procura das palavras brutas que provinham de um pessegueiro velhíssimo, cansado, e dizia que

Tinham bicho, Parvalhão,

Havia bananas em fartura que acabavam por apodrecer, caíam as mangas e uma pasta viscosa preenchia os segmentos de rectas em vazio que de quem e além apareciam no pavimento de cimento, cruzava os braços e imaginava pequeníssimos regos de sumo de manga como ribeiras a caminharem para os braços de um grande amor a que toda a gente chamava de

O Rio,

Nos intervalos fazíamos amor e as tardes intermináveis pareciam pequenos ponteiros de segundos enrolados nas folhas das mangueiras, o relógio estonteando minhocas de neblina nos buracos friorentos, no inverno, que o gesso da parede do quarto transpirava sobre os nossos corpos molhados, chovia, sempre chovia em nós, e ambos amávamos loucamente aquele rio

Qual rio,

qualquer um, sem nome, idade, sonhos, sexo, crenças religiosas, nada, não queríamos saber de nada, apenas que o amávamos loucamente

O rio,

Indolente, faminto, todo o amor aprisionado dentro de um velha caixa de sapatos, tudo envelhecido desde o último encontro e visita à prateleira onde dormem os pequenos bonecos de trapos, o chapelhudo não lá, o chapelhudo ficou lá, longe, fora, e todas as cartas de amor ou as cartas poucas do amor prometido, também elas, lá, longe, do outro lado da rua,

Nua

Também tu?

Escrevias-me silenciosamente nos meus olhos quando não tínhamos papel, Escrevias-me silenciosamente nos meus olhos quando não tínhamos caneta ou lápis ou esferográfica, Escrevias-me silenciosamente nos meus olhos quando não tínhamos luz e às vezes

Faltavam-nos as palavras de “meda”, pequenas, poucas, algumas perdiam-se nos nossos lábios que um largo com palmeiras desenhava nos paralelepípedos graníticos que a noite escondia como tu te escondias na prateleira onde dormiam

Os ditos bonecos de trapos, alguns construídos com pedaços da tua saia, outros com os restos mortais esqueléticos das minhas calças de ganga, e ainda tínhamos outros, os mais “escurinhos” fazíamos-los com os sobejos de sabão e restos de caligrafia, a minha, tão, tão

Também tu? Quando me pressionavas para deixar de fumar, e nua

A rua dos sentidos perdidos, as alfaias em busca de tractores agrícolas como dentes afiados a rasgarem os extensos torrões de açúcar granulado, de cana, beterraba, adulterado em Sacavém ou noutro local qualquer, bebíamos o afamado uísque das noites de boémia quando as caves abarrotadas semeavam o barrento hálito de insónia em exíguos espaços nocturnos, ela, ela

E eu respondia-lhe que não tinha paciência para beijos enfermos e caricias sonolentas,

E partia sem percebermos se era de dia, sem percebermos se era de noite, sem percebermos

(Havia bananas em fartura que acabavam por apodrecer, caíam as mangas e uma pasta viscosa preenchia os segmentos de rectas em vazio que de quem e além apareciam no pavimento de cimento, cruzava os braços e imaginava pequeníssimos regos de sumo de manga como ribeiras a caminharem para os braços de um grande amor a que toda a gente chamava de rio),

Sem percebermos que o amor é assim; nasce, cresce, torna-se adulto e morre, como todas as coisas, e eu respondia-lhe que não tinha paciência para beijos enfermos e caricias sonolentas, e eu respondia-lhe que o inferno é aqui.

 

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:17

27
Jan 13

De esqueletos mórbidos estou eu farto, dizia-se doutorado pelos bares nocturnos da cidade plantada na copa de uma árvore a que todos chamávamos

Inocência dos sonhos,

Pouco tempo depois, via-o passear-se junto às acácias salgados do primo Augusto, as imagens floriam nas paredes viscosas das noites sem estrelas, e de madrugada, quando todos os buracos encerravam, fazia-se arrastar pelos braços de duas sombras com asas, e lilases olhos, e

Inocência dos sonhos, talvez um dia, dizia ele, regressamos ao eterno jazigo de prata onde moram os nossos pais, e eu acreditava

Que os meus irmãos eram loucos,

E

Inocência dos sonhos, a cidade plantada na copa de uma árvore, debaixo dela brincam crianças de cabelo castanho, meninos, meninas, homens, mulheres, silêncios de oiro, rios cansados de regressarem ao mar das oliveiras, entre a montanha dos pilares de areia e a táctil mão de desejo que ela, a minha única irmã, transportava para as cavernas do ciúme, havia a noite, triste, e tínhamos acabado de perder todas as estrelas do céu, penhoradas as nuvens, pergunto-me

Que faço eu aqui? Não sei, mas tenho a certeza que os meus irmãos são loucos, e que as acácias salgadas do meu primo Augusto são processos revolucionários em curso, doutorados pelos bares e caves da cidade, ouviam-se gemidos de luz quando atravessava de eléctrico cidade, a mesma cidade a que todos chamávamos

Cidade da inocência dos sonhos,

Alguns azuis, outros, outros encarnados, confesso, gosto do vermelho, mas prefiro o negro, a noite é negra, os buracos negros, evidentemente, são negros, gosto, adoro, amo, as palavras pretas e pretos que voam dentro dos meus poemas, amo as cidades negras vestidas de branco e inventadas pelas mãos de uma criança negra, preta, húmida

A cidade

Toda nua,

E

Às vezes,

E às vezes ouviam-se orgasmos de mel nas colmeias dos sótãos perdidos dos edifícios perdidamente apaixonados pelos carros em miniatura que o menino António trazia nos bolsos do bibe, chegava à escola, e de bata branca, senta-se numa carteira carunchosa, velha, a mesma onde se tinha sentado o pai, o avô, e o tio Francisco, que diziam ser louco e que depois de ter vivido dez anos na Coreia do Norte, nunca

A cidade

Toda nua,

Às vezes, e dizem que nunca mais apareceu, evaporou-se, como as lâminas de barbear que o aldrabão do meu vizinho me vende, riscadas, velhas, com as janelas extintas em fios de aço, ouviam-se todas nuas

As árvores onde vivia a cidade da inocência dos sonhos, quinto andar – esquerdo, ao terminar o dia, esperava-a à porta da galeria falida onde ela teimava trabalhar, sabendo que as paredes

Nuas, todas nuas

Como os pássaros que viviam no meu pobre sótão, coitado, com um cadastro infernal de doenças, diabetes, colesterol, próstata e nunca esquecer o reumático, e ainda eu não tinha chegado ao primeiro andar já ele em queixumes e aos gritos que às vezes eu não sabia se ele estava mesmo doente, se ele se fingia de doente ou pior, se ele estava grávido e a dar à luz

Eu suava, subia dois a dois, os degraus envelhecidos da madeira ranhosa que o velho Fernando deixou quando partiu para a aventura dos montes de areia, sabia-o e sabia-a, ouvíamos docemente o choro de um recém-nascido, e eu, acreditava

Sim, vou ser pai

E ouviam-se do quinto andar – esquerdo, ao terminar o dia, esperava-a à porta da galeria falida onde ela teimava trabalhar, sabendo que as paredes

Nuas, todas nuas

São gémeos,

E juro que ainda hoje não acredito que de um sótão envelhecido, doente, perdido numa cidade que vive sobre a copa das árvores

Tenham saído os meus queridos irmãos,

Loucos,

Pareciam-se como os outros sótãos da cidade, o mesmo rosto, o mesmo tamanho, a mesma cor, e loucos

E que nunca mais apareceu o tio Francisco.

 

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:00

Em “Mudanças” de Mo Yan, várias vezes é referido um camião (Gaz 51) de fabrico Soviético, EX-URSS. Por curiosidade, até para perceber se era ficção do autor, dei-me ao trabalho de pesquisar, e realmente existiu e ainda devem existir camiões Gaz 51; fica aqui a respectiva fotografia. Produção (1946-1976)



publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:55

26
Jan 13

Fictícias palavras nos feiticeiros lábios dos amores incompreendidos, por vezes, perdidamente esquecidos na berma de uma rua sem saída, e ao fundo, bem lá longe, do enorme corredor de orvalho oiço-te balançando entre espadas com lâminas de desejo e ferros de açúcar que se espetam silenciosamente no peito da mulher desenhada numa tela de vidro doirado, abrem-se todas as luzes, e no entanto, ela ficou quieta, dócil, às vezes voa pela casa, e de tecto em tecto, e de espelho em espelho, multiplicam-se

Hoje são milhares, como a formigas sobre as sandes de marmelada numa tarde de praia, as finas areias brancas solidificavam-se nos pés emagrecidos da criança perdida e que procurava os sobejados pingos de saliva que o vento vomitava contra os rochedos de insónia, não dormíamos, não comíamos, e hoje, somos milhares, como as formigas, fictícias abelhas entre dois Sábados consecutivos, ela sozinha, eu sozinho, multiplicam-se, e sobressaem nas camisolas de pura lã virgem, quando as ovelhas do padrinho desciam a montanha, havia noites sinfónicas com hastes e palavras embriagadas pelos cretinos guardas que existem em todas as prisões imaginárias, tantas coisas dentro da minha bocas, coisas

Poucas, muitas, sons, cheiros, tanta coisa em mim disfarçada de palavras, de sombras, de calçadas, enormes dentes de marfim do crocodilo em pau preto, bela escultura, antiquíssima silhueta de arame farpado que dividia Angola e o antigo Congo Belga, e ele

Vou atravessar o rio,

E desapareceu como desapareceram todos os meus sonhos, e como desapareceram os triângulos das minhas folhas de papel, a cartolina resumia-se a um pedacinho de ardósia desnorteada, sem nome, com fome, à procura

Dos velhos machimbombos da agonia em cachimbos de água, lembras-te Fernando?

Dos pasteis de nata embrulhados nos cigarros, hoje são milhares, como a formigas sobre as sandes de marmelada numa tarde de praia, as finas areias brancas solidificavam-se nos pés emagrecidos da criança perdida e que procurava os sobejados pingos de saliva que o vento vomitava contra os rochedos de insónia, não dormíamos, não comíamos, e hoje, somos milhares, como as formigas, e os cigarros de ontem eram os cigarros de hoje, como as horas que

De Sábado em Sábado, entre duas sílabas de tinta dentro do aparo, aglutinado, e às vezes

Apertar-lhe os pescoço como um laço de corda vestida de luz, não matá-lo, não, e às vezes oiço-te desordenadamente caminhando nas pedras azuis poisadas sobre a cristaleira, não matá-lo, não

E às vezes (as alheiras saborosas) atravesso o rio, sento-me do outro lado e recordo entre Sábados e cigarros os cheiros, as luas, as plantas e os pássaros

Do antigo Congo Belga,

As plantas e os pássaros, os cortinados e as janelas do amor, e nunca esquecer as clarabóias da paixão debaixo dos tectos com estrelas de silicone, vícios desfeitos em trapos, e ruas, e calçadas, e espero, desespero

O jantar está pronto,

E eu não quero saber do jantar de hoje,

Do antigo Congo Belga, algumas fotografias, e o arroz com chouriço durante trinta dias de tortura alimentar, e enquanto comia, imaginava que no prato de alumínio viviam os seios da mulher desenhada na tela de vidro doirado, parvalhão

As alheiras óptimas, saborosas,

Como os livros empilhados no pavimento térreo da vida que construí numa noite de tempestade, os barcos morreram, de quê?

Estupidamente afogados no rio que separava Angola e o antigo Congo Belga, ao longe, muito longe, ao fundo do corredor de escuridão uma criança de medo inventa papagaios de papel, sorri, saltita entre dois Sábados e três fotografias do antigo álbum que guarda os mortos momentos das vidas encalhadas por quatro cantos de uma vivenda em Casais, demorava-me

Como os livros empilhados no pavimento térreo da vida que construí numa noite de tempestade, os barcos morreram, de quê?

Demorava-me a barbear, e deixei de me barbear, demorava-me a pentear, deixei de me pentear,

Fizeste a contagem das cabras, Francisco?

Esqueci-me, não contei hoje, e aqui entre nós, entre dois Sábados, nem ontem as contei, que se lixem as cabras e os montes e as terras e as palavras de gordura como torresmos em sandes de marmelada, longe, muito longe, numa tarde de praia, havia abelhas bronzeadas, havia borboletas apaixonadas, por borboletas abelhas bronzeadas, de quê, Francisco?

Afogados no rio que separava Angola do antigo Congo Belga, fotografias a preto e branco, alheiras e chouriças de Trás-os-Montes, o presunto chegava de cá, lá

E os barcos meu amor?

Como serão os barcos apaixonados por traineiras ou cacilheiros? E lá

E os barcos meu amor?

Como os livros empilhados no pavimento térreo da vida que construí numa noite de tempestade, os barcos morreram, de quê?

Afogados meu amor, a fo ga dos...

Todas e todas,

Demorava-me a barbear, e deixei de me barbear, demorava-me a pentear, deixei de me pentear, demorava-me a dormir, e deixei de dormir, demorava-me a comer, e deixei de comer, demorava-me a atravessar o rio, de deixei de ver os salgados comboios em direcção ao infinito, às vezes, poucas, lá longe, muito longe, ao fundo do corredor, terceira porta à direita, ele lá

A fo ga dos,

Como os mármores sobre os telhados de madeira, subia e sentava-se, e eu

E eu ouvia-a soletrar palavras ensanguentadas de um jornal acabado de ser atropelado pelos salgados comboios em direcção ao infinito,

Sabiam-me os poemas que lia a incenso, e deixei de barbear-me porque demorava-me a contar as cabras quando regressavam do pasto, ao fundo, do corredor, (esqueci-me, não contei hoje, e aqui entre nós, entre dois Sábados, nem ontem as contei, que se lixem as cabras e os montes e as terras e as palavras de gordura como torresmos em sandes de marmelada, longe, muito longe, numa tarde de praia, havia abelhas bronzeadas, havia borboletas apaixonadas, por borboletas abelhas bronzeadas, de quê, Francisco?),

A fo ga dos,

Todos e todas,

Entre dois Sábados, nem ontem as contei, que se lixem as cabras e os montes e as terras e as palavras de gordura como torresmos em sandes de marmelada, a fo ga dos, Francisco?

Todos,

Todas,

A fo ga dos...

Como drageias que os loucos comem, como todos, como todas, as tardes perdidas, como todos, como todas, as tardes de janelas encalhadas na areia das fachadas em ruínas, o mar em ruínas, os barcos em ruínas, todos e todas

A fo ga dos.

 

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:35

26
Jan 13

Incompletas todas as manhãs da tua ausência

e sei que o teu perfume brinca no roseiral

esperando pacientemente que acorde um fio raio de sol,

 

Incompletas todas as lágrimas

recheadas com mel e madrugada

salgada,

 

Incompletas as tuas dóceis mãos de Primavera

que descem imaginariamente pelas ranhuras do meu corpo embaciado

pelas lanternas da inventada paixão,

 

Incompletas

as plantas e os pássaros e os lábios da noite vestida de insónia

incompletas as brincadeiras desenhadas numa ardósia

por duas crianças apaixonadas

e incompletas vaidades

entre as paredes cansadas

os livros coxos

mochos

castanheiros cavernais que as tardes construíam no bairro do hospital

chovia e o vento escrevia amor numa seara de trigo

chovia sempre que alguém invocava a dita palavra

que a húmida terra escondeu das incompletas manhãs da tua ausência,

 

Aglutinavam-se as incessantes veredas lilases dos pilares de orvalho

escrevia-se amor com o espeto de aço inoxidável

e enrolávamos o volante de borracha no pescoço saudável,

 

Libertos dos cigarros libertos das drogas libertos do álcool

percebíamos que as incompletas manhãs no roseiral

eram plumas viscosas dentro de uma jarra de zinco,

 

Os telhados verdejantes das malditas ressacas sem corações apaixonados

os velhos e os novos e os defuntos moribundos

dentro de quatro paredes

sentados no chão

a extraírem a raiz quadrada de 3 865 156.

 

(não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 00:16

O tecto da igreja desabou, o sacerdote de batina suspensa nos ombros saiu em demandada como se Sábado deixasse de ser Sábado, como se hoje houvessem plantas ornamentais nas esplanadas complexas das varandas em solidão, uma velhinha chorava quando no rádio da vizinha a canção maldita começava a rosnar, e enfurecida, ela

Plantas carnívoras, senhor prior? Sim menina Margarida, a nossa querida igreja foi invadida por carnívoras plantas, sabe-se lá de onde vieram, talvez tentações do ensanguentado e tentador Diabo,

Diabo senhor prior?

Não sei, não sei menina Margarida, mas confesso-lhe que começo a ficar com medo, que já não durmo como dormia, que vejo sombras nas paredes do meu quarto acanhadíssimo, porque nunca há dinheiro para as obras, e os fiéis

Defuntos e não defuntos,

Tesos como os barrotes do senhor Manuel, que ele utiliza como escoras do alpendre semeado sobre o primeiro piso térreo da mansão, quatro paredes com buraquinhos por onde se avista, ao longe, o mar desenhado num lençol que a tia Margarida deixou estendido na varanda, e durante a noite,

Porque,

As faíscas desagradáveis dos silêncios embaciados que o fumo do cigarro do senhor prior deixou ficar sobre as flores embalsamadas, as plantas carnívoras multiplicam-se como de impostos se tratassem, e a velhinha Margarida reclama

A minha reforma já nem me chega para comprar água,

Porquê?

Porque o tecto da igreja desabou, o sacerdote de batina suspensa nos ombros saiu em demandada como se Sábado deixasse de ser Sábado, como se hoje houvessem plantas ornamentais nas esplanadas complexas das varandas em solidão, uma velhinha chorava quando no rádio da vizinha a canção maldita começava a rosnar, e enfurecida, ela contava religiosamente os cêntimos que nunca sobejavam,

E ao longe o senhor prior

Não me fale em cêntimos, menina Margarida, não me fale em cêntimos,

Vou falar-lhe em quê senhor prior? Vou falar-lhe em quê…

Olhe

Porque,

Fale-me em plantas carnívoras, fale-me no Diabo, fale-me

Diga, diga senhor prior,

Fale-me na cidade de Luanda que festeja hoje o seu 437º ano de existência, mas por favor, por favor menina Margarida

Não me fale em cêntimos que me recordam um canino que tive na infância, e que Deus o tem, em qualquer sítio, julgo eu, como

Olhe

Porque,

Como as faíscas desagradáveis dos silêncios embaciados que o fumo do cigarro do senhor prior deixou ficar sobre as flores embalsamadas, as plantas carnívoras multiplicam-se como de impostos se tratassem…

 

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:02

Janeiro 2013
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