Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

03
Jan 13

Liberta-me, alimenta-te de mim, come-me,

Noite sem fim, quando as ausências programadas cintilam, correm, desgraçadamente pela espinhal medula, as madrugadas, os fantasmas em pálpebras cerradas, húmidas, cansadas em ti, e a Emília

Quero o divórcio,

O meu pai que sim, mas o miúdo fica comigo, como se eu fosse um livro do Kundera ou do Lobo Antunes, e depois de uns quatro ou cinco uísques, o meu pai

Vamos lá repartir os livros, tu, para a Emília, tu ficas com os livros do Milan Kundera, eu, o meu pai, eu fico com todos os outros, ela, a Emília, porque só fico com os livros de Milan Kundera, eu, o meu pai, porque eu quero,

E eu, o miúdo, não tenho voto na matéria? Tudo indicava que não

Quero o divórcio,

A noite quando vinha quase sempre trazia companhia, uma ou duas abelhas deambulavam na sala de jantar, e ainda hoje não percebo

Abelhas na biblioteca? E eu, o miúdo, não acreditava, estás a mentir-me pai,

Claro que não, e ainda hoje não percebo porque nos fomos embora, e ainda hoje não percebo os carris paralelos onde brinca o comboio, e nunca, nunca se encontram no infinito

Divórcio,

Liberta-me, alimenta-te de mim, come-me, pensava eu, o miúdo, em voz alta, abria a janela com vista para as traseiras da casa, o quintal emblemado com silvas e tojos embrulhados em amarelo cetim, urtigas, miudezas algumas, e eu, o miúdo, e eu

Decidam-se, quem fica com quem?

E eu, o miúdo

Estás a mentir-me pai, não é verdade que sou um livro

É?

Talvez, não sei, resmungava a porteira

Toda a porcaria aqui vem parar, como tudo era diferente antigamente, ninguém se metia na vida de ninguém, sempre o respeitoso Bom dia dona Margarida, como passou a noite?, ou

É?

Quero o divórcio,

Como tem passado Dona Margarida?, e eu, não o miúdo, eu a porteira, e eu lá lhe ia dizendo que o maldito reumático não me deixava dormir, e eu, não o miúdo, eu a porteira, a queixar-me das dobradiças e parafusos, E a netinha já deve estar um mulherzinha?

Olhe menina Margarida, um anjo que teve a infelicidade de casar-se com um estafermo, e ao que parece

Quero o divórcio,

Vão divorciar-se, ao menos livra-se daquele paspalho, o meu pai, e só tenho pena dele, eu o miúdo, coitadinho dele, tão novinho, coitadinho dele, um anjo que teve a infelicidade de nascer numa cidade com edifícios de barro e palha com janelas para as urtigas e tojos embrulhados em papel amarelo, e silvas, e pássaros dona Margarida, e pássaros

Ai dona Amélia ainda me lembro da menina Emília em corridas aqui no Hall de entrada, loira, espertaaaa como nunca vi, e deixei de a ver, hoje não a conheço, vamos lá repartir os livros, tu, para a Emília, tu ficas com os livros do Milan Kundera, eu, o meu pai, eu fico com todos os outros, ela, a Emília, porque só fico com os livros de Milan Kundera, eu, o meu pai, porque eu quero, e pássaros dona Margarida, muitos, em cada esquina

É?

Um anjo que teve a infelicidade de nascer numa cidade com edifícios de barro e palha com janelas para as urtigas e tojos embrulhados em papel amarelo, e silvas, e pássaros dona Margarida, e pássaros, e eu, o miúdo, e eu

Porquê pai? Tu, para a Emília, tu ficas com os livros do Milan Kundera, eu, o meu pai, eu fico com todos os outros, ela, a Emília, porque só fico com os livros de Milan Kundera, eu, o meu pai,

Porque eu quero,

E eu, o miúdo, e eu a ouvi-los

Liberta-me, alimenta-te de mim, come-me,

Noite sem fim, quando as ausências programadas cintilam, correm, desgraçadamente pela espinhal medula, as madrugadas, os fantasmas em pálpebras cerradas, húmidas, cansadas em ti, e a Emília

Quero o divórcio,

Como se eu fosse um livro, um pequeno livro, oco, simples, sem palavras, sem carroceis, carrinhos de choque, eu, eu o miúdo, eu como se eu fosse um livro de poesia que ninguém

Eu leio muito

Lê,

Diurno, o nocturno miúdo dos desejos, como se eu, o miúdo, como se eu fosse um livro, grosso, aprisionado numa prateleira longínqua onde barcos de madeira se passeiam, sonham, caminham, e cavalgam montanha acima, até chegarem ao céu dos incensos, e eu, eu o miúdo

Sofrido, cansado, triste, imundo,

e eu, eu o miúdo

À espera de um afago por parte da porteira, a única que nunca se queixava dos ossos que diziam crescer nas paredes do edifício construído em barro e palha, e com janelas

Lembras-te miúdo?

Claro que sim,

Para o quintal emblemado com silvas e tojos embrulhados em amarelo cetim, urtigas, miudezas algumas, e eu, o miúdo, e eu

Decidam-se, quem fica com quem?

E eu, o miúdo

Estás a mentir-me pai, não é verdade que sou um livro

É?

Claro que não.

 

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:18

Janeiro 2013
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