Parecias-me tão entretido com as tuas coisas banias que nem me dei ao trabalho de verificar se a janela da sala estava bem fechada, zumbia solenemente o vento que soprava de cima para baixo, em pequenos círculos, como as moedas quando caem de uma altura superior e aterram nas algibeiras erradas, nunca tiveste sorte, queixavas-te todos os dias, em todos os jantares, em todos os serões, e à lareira, dizias-me
Vou-me embora daqui, para sempre, e nunca mais voltarei a este País, eu, confesso, nunca acreditei, como nunca acreditei que conseguisses deixar de fumar, cigarros, heroína, esbelta, finíssima com saia curta e camisa branca, sei que não pensas nela, que já não tem importância para ti, mas confesso, que às vezes,
Medo, o medo, o medo que voltes a apaixonares-te por ela, me troques por uma prata com bolhas castanhas em corridas de carrossel, o taxímetro sempre a rolar como um carro de rolamentos a descer a calçada em direcção ao Tejo, os edifícios de Santa Maria de Belém, tremem, encostam-se às trincheiras submersas nas clareiras da morte, e uma menina com tranças aborda-me
Pai?
Fico quieto, impávido, e pergunto-lhe
Eu?
Que sim, claro, tu, o medo, e penso
Talvez seja uma brincadeira de Carnaval...
Talvez?
Olha para mim e diz-me se tenho cara de brincadeira de Carnaval, e confesso que nunca vi uma menina com rosto de Carnaval, e respondo-lhe que não, não sei, nunca vi um, talvez não tenha, talvez seja verdade, talvez
Pai?
Finíssima com saia curta e camisa branca, cabelos loiros voando sobre a cidade de areia, lilases barcos em madeira prensada rompem as agulhas desgovernadas dos carris de manteiga, oiço-a dentro de mim com as cores da paleta recheada de uma espessa e fina e brilhante atmosfera com cheiro a Barcelona, dormia e acordava em sandes de cartão
Finalmente, eu, o teu pai, o feliz mendigo vestido de rochedos esponjoso e flores de plástico, sempre são mais baratas, dizias-me antes de eu ter partido de casa, de cidade, de vida, de
(Parecias-me tão entretido com as tuas coisas banias que nem me dei ao trabalho de verificar se a janela da sala estava bem fechada, zumbia solenemente o vento que soprava de cima para baixo, em pequenos círculos, como as moedas quando caem de uma altura superior e aterram nas algibeiras erradas, nunca tiveste sorte, queixavas-te todos os dias, em todos os jantares, em todos os serões, e à lareira, dizias-me)
Amanhã não temos lenha para a lareira, respondia-te que tínhamos muitas portas e janelas e mobílias que quase nunca utilizávamos,
Voltavas à carga,
Amanhã não temos nada para comer, respondia-te que enquanto tivéssemos as galinhas da vizinha, para uma canja e um arroz com os miúdos não haveria de faltar, e depois logo se via, ah e ainda podemos aproveitar o restante para um churrasco, como vez, há sempre uma solução para tudo, menos para a miúda de tranças com rosto de Carnaval, Rosto? Não, com cara de Carnaval, e eu imaginava-a pendurada numa árvore a olhar as algibeiras recheadas com as moedas de às vezes
Caem como os tordos depois do jantar,
De às vezes uma silenciosa ânsia melancólica saltitar sobre o muro de xisto que divide o dia da noite, de às vezes esqueceres-te de ligar o interruptor do nosso esquerdo lado, e sempre noite dentro de nós, como as flores que colocavas sobre a minha lápide e eu preenchido com as pratas de alumínio em busca da dama de saia curta e camisa branca, dos cabelos um perfume estranho, vazio, entranhava-se como se entranha, às vezes, as lágrimas miudinhas das tardes de Inverno, à parte disso
Tenho os meus sonhos em consideração e demito-me das funções que me foram confiadas, estou farto desta cidade, desta terra e deste mar, como todos os pássaros, partiremos daqui a poucos dias, pouca coisa entre nós, duas ou três mudas de roupa, o livro de Bernardo Soares, e uma gabardine de senhora
No caso de ela aparecer,
Pai?
Fico quieto, impávido, e pergunto-lhe
Eu?
Que sim, claro, tu, o medo, e penso
Talvez seja uma brincadeira de Carnaval...
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha