Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

14
Mar 13

Chega, como todas elas disfarçadas de leão, ou andorinha, ou gaivota, conversávamos debaixo das cerejeiras mergulhadas nos olhos tristes, negros, que às vezes também sofrem, dormem, voam sobre o xisto em lençóis de vento, fatias de madrugada, migalhas concentradas na água mineral da pobreza, sabia-o, quando aparecias dentro da minha mão, saborosa, a sua boca convexa, cinzenta, com mordeduras de marfim nos finais de tarde junto ao Tejo, conversávamos

Sabias que hoje o Gonçalves se vai casar?

Não, não sabia, e tenho a certeza que é a primeira vez que oiço tal coisa, casar o Gonçalves? Hum... só vendo com estes dois olhinhos de cereja com chocolate, ora essa... o Gonçalves,

Ora essa, chega, como todas elas disfarçadas de leão, cobras e lagartos, em cima da mesa velha em madeira recheada com o bicho e a teia de aranha da vizinha Manuel, e tal coisa, diga-se, juro que não vi nada, juro que nunca me deitei na cama dele, nem em sonhos

Nem em sonhos, suas desgraçada?

Juro, juro madrinha, juro

Apaixonei-me por bailarinos e bailarinas, em miúdo, o meu ídolo chama-se, e vá lá saber-se porquê, chama-se

Rudolf Nureyev,

E o silêncio entranhava-se-me como as primeiras palavras que ouvi, e o mar batia-nos à porta, abríamos-a, e ele entrava, o corpo dele parecia construído em fibra de carbono aerodinâmicamente adormecida nas clausuras dos grandes desenhos que ficaram expostos no barco em esferovite com um motor de um carro a pilhas, uma hélice de sílabas saboreava o estômago feliz do tanque onde as meninas iam lavar a roupa, e nós, rapazolas traquinas, sujávamos a roupa a corar silenciosamente poisada sobre as ervas filhas de Deus, e nós

Rudolf Nureyev, fascinava-me...

E nós

(juro, juro madrinha, nunca fui com ele para a cama), e nós deitávamos a cabeça no sono do vento, abraçávamos-nos como se abraçavam as plantas do jardim da tia Clementina, que Deus a tenha em bom descanso, e eu, armado em camelo, acreditei

Que hoje casava o Gonçalves, e afinal, não casou, e afinal, tudo um conto transformado em pesadelo, a noite desceu e levou-o até ao Terminal de Cruzeiros da Rocha Conde de Óbidos, e o meu rosto mais parecia um óbito do que uma criança acabada de regressar do infinito, com uma pesadíssima mala indesejada, feia, mórbida, torrencialmente vestida de prateado, e lá dentro

Coisas, coisas de uma criança,

E lá dentro,

Nem em sonhos, suas desgraçada?

Juro, juro madrinha, juro

Apaixonei-me por bailarinos e bailarinas, em miúdo, o meu ídolo chama-se, e vá lá saber-se porquê, chama-se

Rudolf Nureyev,

E lá dentro, alguma camisetas, calções, um par de sapatos, um par de sandálias, três ou quatro bonecos, um avião e um barco, e lá dentro, coisas, muitas, poucas, desgraçada

Juro,

E apenas encostei a minha cabeça no seu ombro, madrinha, só isso, e nada mais,

E achas pouco?

Havia mandíbulas de areia com espinafres, sobre o soalho de pano brincava um longo triângulo com três olhos de cereja com chocolate, estão a ver?

Aqueles olhinhos como os da Alice, sim, a Alice Silvestre, ora não sabem quem é..., a Alice, porra, a que vive no final da rua junto ao fontanário, quem desce do lado esquerdo as escadas para o talude dos orgasmos, uma flor de terra salgada emerge do longínquo cilindro de granito, estão a ver?

A que tem três galinhas e um galo? Sim, essa, essa mesmo, nem mais, que coisa, para perceberem uma simples asa de borboleta fazem cá um espectáculo que até parecem o

Rudolf Nureyev,

Entre sonhos e birras de infância,

E eu ouvia-os

Francisco come a sopa,

E ele

Ouvia-os como ouvem os mercadores que se passeiam pelas avenidas desesperadas da cidade com cadeados de seda e sombras de linho, e ela, a querida Alice, não chorava, e a outra, a afilhada, chorava desejando que desejava

Repetir,

Apenas,

Deitar a cabecinha no ombro dele...

Sem que a dita madrinha soubesse, como nunca o sabem, as pessoas que trabalham como espantalhos nos campos de milho de Carvalhais, e era eu, eu que desenhava círculos no rabo de uma agulha e depois

chorava,

E queria ser como o

E depois,

Como o chorava dos vidros e dos pregos de aço, quando derretiam os cubos de manteiga pasteurizada que a avó Silvina trazia da loja, uma tasca que de vinho, também vendia, pão, manteiga, arroz e feijão...

E saudades de ontem.

 

(ficção não revisto)

Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:56

Porque não te encontro

se a montanha está aqui

se o rio de braços abertos

corre incessantemente para o mar

apenas para te abraçar

corre

corre nas gotas da miudinha chuva

despida

nua

dos lábios da lua...

ah... se eu te encontrasse

dentro de uma caverna enfeitada de madrugada,

 

(se o rio de braços abertos

corre incessante para o mar

apenas para te abraçar),

 

Porque não de encontro

se a montanha está aqui

deitada nas árvores de prazer

e te amar

na noite construída de azuis laços de esfera

(não te encontrando)

perdidamente nos beijos de beijar

devagarinho até ao mar,

 

Porque não te encontro

luz do candeeiro de ternura

que amena dos livros apaixonados,

 

Porque não te encontro

menina porcelana

com feitio de cigana

no espelho da madrugada

porque não

encontro

te fingindo adormecer

sobre a cama da saudade...

 

Porque não te encontro

se a montanha está aqui

entre crepúsculos e marés de vidro

nas pedras onde nos sentamos

e beijamos

ao som do Pôr-do-sol...

 

(não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:41

Março 2013
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9






Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

subscrever feeds
Posts mais comentados
mais sobre mim
pesquisar
 
blogs SAPO