Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

28
Mai 13

foto: A&M ART and Photos

 

Sentia-me sem asas enquanto olhava os pedaços de vento que a manhã fazia acordar, ouviam-se-lhes em gargantas ocas, palavras de afecto, carinho, e desejo, havia árvores que balançavam, e não havia veleiros em passos curtos, sobressaltados, como os anjos quando sobem aos postes de iluminação pública e aclamam o nome, o meu, mas em vão,

A escada de acesso ao cais, em poucos segundos, ruiu, evaporou-se como se tinham evaporado todos os barcos com partida marcada para as nove horas da manhã, e já nas oito, desapareceram como abelhas depois da tempestade aportar nas flores em pólen adormecido, ninguém gostava de mim, porque diziam que eu era estranho, estranhamente só como as lâmpadas de algumas cidades, quando são despejadas as ruas dos velhos mapas, suspensos nas paredes caquécticas do desassossego e morte, havíamos de construir um rapaz robusto e cheio de vitalidade, diziam

Tal e qual o pai, perguntava-me, qual deles?

Queria ser bailarina, costureiro, queria ser marinheiro, navegador de barcaças entre a margem norte e a margem sul, queria ser guardião de mabecos no capim da saudade, queria ser papagaio de papel ou sombra de jornal, portão de entrada num quintal do Bairro Madame Berman, queria ser nuvem, escada, avião, barco cansado, prostituto, barco simplesmente, como as canções dos melros quando me encontro entre o acordar e o não acordado, havíamos de encontrar uma Baía com palmeiras, víamos o mar, havíamos de comprar duas cadeiras, e

Diziam que nós, e não ligávamos tão pouco ao que nos diziam,

Porque as nossas fotografias tudo dizem, é só o esforço de folhear os dois álbuns e recordar, imaginar que ainda estamos vivos, e depois de sentados nas duas cadeiras que tínhamos comprado, ouvíamos o rosnar do mar dentro dos nossos peitos, tu

Eu pegava na tua mão silenciosa, por vezes tão ausente como a tempestade nos finais de tarde, havia pombas no galinheiro que comiam juntamente com as galinhas, e sentia-me liberto das tristezas manhãs quando além de ouvir os murmúrios do mar, ouvia os ruídos da tua mão caminhando vagarosamente no meu ventre, e descia vento, e levantavam-se-lhes os cocos até que das vozes sem corpo, renasciam solidões de azoto, e paixões de insónia, eu, na tua mão, no teu ventre, tu, caminhavas-me mar adentro, e as cadeiras de vime voavam em direcção à ilha dos desejos, hoje não, confesso-te, ainda te amo, como te amava quando brincávamos entre bananeiras e corridas de cavalos, jipes saltimbancos correndo de musseque em musseque, davas-me a mão, remexias-me o ventre como se eu fosse a algibeira perdida dos calções de pano, e mesmo assim,

Diziam que nós, e não ligávamos tão pouco ao que nos diziam, éramos folhas de papel e que apenas servíamos para limparmos o rabo

(branco é papel que só serve para limpar o cu)

E acredito que ainda existem nuvens envergonhadas nos telhados de zinco, as pombas coabitavam alegremente com as galinhas, tu, coabitavas alegremente comigo, que diziam

É estranho, este miúdo,

E gostavas de mim como gostávamos dos silêncios navegantes das flores em despedida, encerrado o caixão, ele entrava num túnel de alegria até chegar ao rio, entrava na profundidade da tristeza, alimentava-se de beijos, bocas, lábios simplificados pela regra do quadrado, extraíamos a raiz quadrada do teu corpo, e ficava com nada, zero, bananas, latidos de mabecos envergonhados e pouco mais, e tudo porque um dia, um dia de tarde, disseste-me

Amo-te, querido João,

Confesso, não sei ainda se te reconheceria no amontoado de fotografias, antigas, éramos crianças em viagem e que acreditávamos no regresso dos pássaros depois de partires, e esperávamos, esperávamos...

Até que adormecíamos de mão dada

(branco é papel que só serve para limpar o cu)

E ainda não ouvíamos comboios a apitar dentro de nós.

 

(ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:32

foto: A&M ART and Photos

 

Queria ser como tu não sorrido como eu

queria ser um veneno que habitasse no teu peito

um construtor de insónias

um transeunte faminto combinando encontros nas paragens do eléctrico

sem bilhete e despido e ausente deprimido,

 

Queria ter-te e ser como tu não sabendo que lá fora choram as garças

que amanhã é quarta-feira e as nuvens deixaram de ser em algodão

e as horas não são não

mais torrões de açúcar deitados na tua mão

queria ser como tu e não saber que existem noites em noites como noites...

 

Assim nuas despidas contínuas e semeadas entre planícies e almas desesperadas

como tu eu um esqueleto de vento saboreando pipocas

numa cadeira junto ao rio

sonhando não sonhando com frio em cio

como tu quando acordas e dás-te conta que eu nunca existi em ti,

 

Porque sou um banco simples de jardim

como tu em ripas do jejum anunciado

queria voar como voavam os teus cabelos no silêncio dos paquetes em movimento

como tu eu assim... deambulando na ponte para o amanhã não sabendo dizendo

como tu que as rosas têm espinhos de porcelana e lábios de andorinha,

 

Porque sou um camelo desorganizado

não como tu porque tu és sossego e plenitude prometida

palavras em degraus de escada

contra o corrimão assim como tu deitada

à espera que regresse a madrugada dos ilustres corredores da paixão...

 

(não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:08

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