Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

29
Jun 13

foto: A&M ART and Photos

 

Deixei de ti os silêncios envergonhados

alicerces maleáveis com cabeça de madeira

deixei em ti o sulco prometido das rosas envelhecidas

cantigas da madrugada

cantigas... palavras húmidas

que o teu corpo absorve

como uma esponja recheada de lâmpadas de halogéneo...

como uma mão emprestada,

 

Cantei de ti

as cantigas profanadas nos jardins da insónia

gostei de ti em ti depois das estrelas sobre a cama nocturna com olhos de luar

entrarem em mim

deixei de ti

os silêncios envergonhados...

deitados os maleáveis sonos programados pelo relógio portátil em paredes ocas de gesso...

e um coração de ti parece romper as cordas que prendem a tenda do circo ao chão de areia,

 

Cansei-me de ti

em ti

por mim

entre colunas de granito e traves velhas de castanho...

cansei-me

das palavras ocas das paredes húmidas

em corações de gesso?

Mentiras de ti quando acordam em mim os silêncios envergonhados...

 

(não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:43

foto: A&M ART and Photos

 

Saltávamos o pequeno muro todos os finais de tarde, após a escola, às vezes com milímetros de fome a brincar nos estômagos vazios, nós, nós existíamos apenas porque tínhamos de existir, era-nos proibido desistir, era-nos proibido entrar no quintal do senhor António Joaquim de Alicate, homem robusto, homem rude, e de poucas palavras,

Um dia

E das poucas palavras, as poucas palavras, se não servissem para resmungar com três ou quatro miúdos, serviriam para quê? O quê? Não acredito, queixava-se ele, um dia, quando ia para entrar no palheiro e viu-me sobre o telhado, em pés de lã à procura de uma velha bola de futebol, gritou-me

Agora salta!

Claro que eu, incrédulo comigo mesmo, saltei, caí, não me magoei... e consegui desprender-me das suas garras de lobo solitário, Palavras? Para quê? E ainda hoje, durante a noite, quando abro a janela e espero que regresse, sinto-as

Agora salta,

Sinto-as ao redor do meu esguio pescoço, como se fossem finos arames suspensos entre duas árvores, eu, incrédulo, vestido de palhaço, percorro o arame, e sinto-as, as mãos do senhor António Joaquim de Alicate e a triste bicicleta da menina Alzira, que ainda hoje, quase com noventa anos

Olá, menina Alzira... está boazinha?

Claro que sim, responde-nos, e desde o salto mortal entre quintais, que ela, que ele, que nós, nós que supostamente não era para existirmos, inacreditavelmente, existimos, e ainda hoje, em todos os finais de tarde, saltamos os quintais invisíveis, alguns deles foram degolados por escavadoras e bulldozers, tal como o senhor António Joaquim de Alicate, robustos, de poucas palavras, para quê palavras?

Agora salta...

E eu saltei, voei sobre as espigas de trigo, e em vez de cair

Ainda hoje sinto-lhe as mãos no meu esguio pescoço,

E em vez de cair sobre uma leve cama de espigas de trigo com lençóis de cansaço, não, não ouvi as palavras dele, não percebi as palavras dela,

Ainda hoje

Menina,

Ainda hoje

Salta,

Ainda hoje

Olá, menina Alzira... está boazinha?

Um dia

E das poucas palavras, as poucas palavras, se não servissem para resmungar com três ou quatro miúdos, serviriam para quê? O quê? Não acredito, queixava-se ele, um dia, quando ia para entrar no palheiro e viu-me sobre o telhado, em pés de lã à procura de uma velha bola de futebol, gritou-me

Agora salta!

E eu, ainda hoje, não consegui poisar o meu corpo no doce chão, nós, três ou quatro, de quintal em quintal, saltávamos os pequenos muros, e eu, ainda hoje, tenho saudades do senhor António Joaquim de Alicate e da menina Alzira, e eu

Sobre o telhado do palheiro...

E eu, hoje, sinto-lhe as mãos no meu esguio pescoço.

 

(ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:40

foto: A&M ART and Photos

 

Sentia as tuas mãos a sufocarem-me das palavras não escritas

promessas incompreendidas quando havia uma manhã de desejo

correndo encosta abaixo

afogando-se nas veias submersas em saliva que escondiam sombras do meu pobre esqueleto

ossos e pó deles envenenados pelas imagens a preto-e-branco dos meus lábios descoloridos,

 

Amargos

sofridos quando sabíamos que era o último reencontro após a partida em direcção ao nada

sabíamos e não o confidenciamos a ninguém

apenas trocávamos verdes olhares de verdes olhos

em frente à inocência saudade,

 

Sentia a tuas mãos de xisto

vagueando no meu corpo de árvore em papel paixão

poisavam pássaros em ti

e ouviam-se as tuas dolorosas canções de amor

caminhando sobre a praia-mar...

 

Uma floresta de carnívoras madrugadas acordava dentro de nós

quando abrias os olhos e sabias que já tinha partido

descia a janela com vista para as rochas mergulhadas no mar...

e procurava da noite dispersos gemidos de ti

que eu pensava serem versos nas folhas mortas do poeta,

 

O livro escrevia-se conforme se extinguiam as luzes dos nossos gemidos

formatávamos os nossos discos rígidos até percebermos que já não éramos nós

eu deixei de saber quem eras

e tu, tu percebias que eu não passava de um mero cortinado de areia

a brincar numa rua de Luanda...

 

(não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 14:24

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