Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

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Jan 16

As escadas ingrimes levavam-me ao cubículo do segundo andar, lá dentro Matilde esperava-me, bato à porta na confusão da sombra do corredor, arrependo-me no medo de me ter enganado e por momentos deixo de ter a certeza se era o duzentos e dezasseis ou o duzentos e dezassete, a porta abre-se e o sorriso de Matilde abraça-se às frestas do gesso embebido no suor da tarde,

Da janela virada para a rua subiam,

E desciam,

Crianças brincavam na ruela e mulheres discutiam porque o marido de uma dormia com o marido da outra,

O rio,

Da janela virada para a rua subiam os desejos do tejo e o cheiro a saudade alicerçava-se no tecto do cubículo,

Feio,

O rio deitado junto à esplanada de Belém e desciam gaivotas das nuvens de Outubro e subiam cansaços dos magalas invisíveis que marchavam numa parada militar invisível,

Matilde abraça-me,

E encosto a cabeça no perfume barato que adormecia no pescoço enfeitado de dálias e gladíolos, da janela virada para a rua subiam,

E desciam,

O rio,

Feio,

Nas frestas que nos observavam e terminavam no espelho embaciado e que vezes sem conta e em silêncio e repetidamente folheavam junto ao rodapé as estórias de desejo do cubículo,

Um homem e uma mulher que ardem na fogueira da tarde,

Um homem e outro homem que suspiram no odor do corpo emagrecido e encharcado de gotinhas de prazer,

Uma mulher e outra mulher simplesmente deitadas, e uma o lençol da outra, beijavam-se e adormeciam sobre o nevoeiro que acordava no tejo e no final da tarde,

Da janela virada para a rua subiam,

E desciam,

O rio,

Feio,

E frio,

Quando me sento na margem do Tejo e ao longe as luzes de Almada, o cigarro cresce na noite e o meu corpo parece um pedacinho de papel misturado no vento, a cama range tal como os suspiros de Matilde se enrolam no néon dos veleiros estacionados na vazante da maré e sinto-lhe os lábios de cereja adormecidos no meu pescoço, e frio, o rio,

E desciam,

Os braços dela até às minhas coxas argamassadas de estrelas,

- Amas-me?

E oiço sussurros no meu ouvido, amava-te muito se não tivesses os problemas que tens e não fosses quem és, e uma língua baloiça na minha face,

- Amava-te muito se não tivesses os problemas que tens e não fosses quem és,

E enquanto extingo o meu olhar nas luzes de Amada pergunto-me quem eu sou?

- Quem eu sou?

O rio que corre,

Frio,

Feio…

E da janela virada para a rua subiam,

E desciam,

Corpos ensanguentados no desejo do sémen,

- Amas-me?

 

Francisco Luís Fontinha

in “Amargos lábios do Poema”

sábado, 30 de Janeiro de 2016

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:32

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