Tenho um esqueleto amaldiçoado; sinto-o quando os ombros se cruzam na madrugada.
Tenho a certeza que amanhã serei capaz de voar sobre os sobreiros da tempestade,
Como um pássaro enlouquecido,
Como uma nuvem sem destino
Quando o poço da tristeza inventa desenhos na areia da insónia.
Pego nos cigarros amachucados pelo prazer,
Pego no livro estacionado sobre a minha secretária,
Que me espera, todas as noites, antes de adormecer.
E este madito esqueleto não se cansa de ranger,
Sei que todas as flores do meu jardim não me pertencem,
São alugadas, algumas, e outras, e outras emprestadas pela vizinha do terceiro direito,
Estão à minha guarda como uma criança entre círculos e palavras no recreio da escola,
Os vidros da inocência que parti com uma bola desenfreada,
As pedras que atirei aos vidros substituindo a bola desenfreada,
O silêncio da sebenta escondida na pasta,
A bata que trazia nunca regressava com todos os botões,
Os joelhos rasgados,
Os cotovelos ensanguentados…
Mas era feliz assim, como hoje sou feliz assim.
Com o esqueleto amaldiçoado,
Transparente verniz que cobre a minha pele,
Poema que deito no lixo porque não gosto dele,
Este ainda não o sei,
Talvez no final vá fazer companhia ao túmulo dos Deuses Sagrados,
Caderno pérfido, esferográfica mais parecendo uma enxada… e ao longe o Douro encurvado nas coxas da montanha,
Desprezo-me,
Não me apetece cortar o cabelo, não me apetece desfazer a barba…
Dizem que sou um vagabundo,
E sou-o.
Uma cidade esvairada, uma campânula nas festas de aldeia,
Tenho um esqueleto amaldiçoado, é pobre, é velho, e mesmo assim tenho de o transportar de aqui para ali e de ali para aqui,
Loucos,
Loucas,
A boca quando dos lábios brota a Primavera,
Quando o fogo incendeia o meu corpo e só o mar consegue sossegar-me deste esconderijo nojento, obsceno, ridículo,
Tenho noites assim, tenho noites desgovernadas pelas fotografias da minha infância,
E apenas sinto os barcos a passearem-se junto a mim,
O meu cão ladra,
Não me apetece cortar o cabelo e desfazer a barba…
Porque sou um vagabundo que tem um esqueleto amaldiçoado.
Francisco Luís Fontinha
quarta-feira, 27 de Abril de 2016