Naquela tarde, a saudade alicerçava-se ao sorriso e, este, convalescente do medo, dava a mão à solidão, os pássaros brincavam nas janelas do silêncio, saltitavam como pedras envenenadas por uma laranja de mau-gosto, o amor,
- amas-me?
Como sempre, poisada nas escadas do sótão, a caneta de tinta permanente, às vezes cansada dos versos sem nome, sublinhava na escuridão as sílabas que apodreciam no jardim lá de casa,
- Tenho medo,
Dizia-me ela ao acordar,
E, no entanto, as almofadas continuavam suspensas na janela do sótão com fotografia para a noite, descia os cortinados, sentava-se no colchão envergonhado pelo sémen e, nada, apenas o cheiro intenso do alecrim, um pequeno ramo que o afilhado tinha deixado pela Páscoa,
- O folar, apelidavam-no de poema inverso, desplante manhã de Primavera, entre a agonia de um dia e a tristeza da noite, velhinha, folgaz, teimosa nas camadas finas de poeira que assombravam os móveis,
Mesmo assim, ao deitar, preparava um beijo, flores amargas, sonolentas, que a faca da cozinha laminava como drageias no imenso clarão da cidade,
- O Padre,
Bom dia, bom dia,
Que horas são?
Incêndios entre corpos carnívoros pelo cansaço do sexo, é tarde, dizia ela, e o amar entrava sempre sótão adentro,
- Estou longe,
O ausente, camuflado homem das tristes sobrancelhas, rabugento, feliz pelas palavras das abelhas e, todas as marés anoiteciam no falso ouro das grandes avenidas que circundavam o sótão da saúde, tenho medo,
- Amanhã o Inverno será tardio, o feriado, um pouco mais de azul, na poeira que adocica todas as palavras do dicionário, como sempre, a saudade, o amor, a paixão,
- A paixão come-se?
Às vezes, meu amor, às vezes come-se; outras, bebe-se.
Francisco Luís Fontinha
30/04/2020