A tia marta entalada nas espinhas da maré, e puxava e puxava e puxava, e das ondas do mar acordavam malmequeres ranhosos, fotografias penduradas nas paredes esqueléticas do corredor e ao fundo da rua e depois de atravessar duas ruelas e três portas reumáticas a afamada casa de banho, um cubículo minúsculo de serventia para dez quartos engelhados onde as profissionais do sexo e travestis e clientela de quecas apressadas afogavam os resíduos árduos de poucas horas de trabalho, poucas horas de prazer, e muitas horas de humilhação e desespero,
- Só quero amealhar alguns euros para zarpar desta sanzala queixava-se a tia marta cansada de vinte anos a subir e a descer escadas, a madeira cerrava os dentes e de dois em dois degraus sentiam-se os ais e uis,
E poucas horas de prazer e prazer nenhum, fingir, gritar sons contra a parede e das frinchas desprendiam-se pedacinhos de saliva, e a cama balançava nas árvores estacionadas no rio,
- Só quero amealhar alguns…, e dos cinquenta euros livres de impostos tenho de pagar o quarto, vinte e cinco euros, a respetiva percentagem para o meu sócio, vinte e cinco por cento, e fico com nada,
Em frente à janela sentiam-se os ais e os uis e vinte anos a subir e a descer as escadas amarrotadas da vida,
- E fico com nada,
O desespero do velhote quando olhava para o mostrador do relógio e duas horas tinham passado e nada, e fico com nada, o taxímetro poisado sobre as coxas da tia marta, e nada, inseria a moeda na ranhura, e a ranhura voltava a devolver a moedinha,
- E fingir, e gritar, e construir frases entre os lençóis embaciados pelo desejo do velhote, E que foi bom, Foi ótimo, E que gosto muito de ti, E que eu também,
E fico com nada, e nada,
A tia marta entalada nas espinhas da maré, e puxava e puxava e puxava, e das ondas do mar acordavam malmequeres ranhosos, e das ondas do mar vinham as rugas que sentia no rosto e se recusava a olhar no espelho esquecido na parede, e dentro do guarda-fato escondiam-se vinte anos de miséria, e uma casa de banho ao fundo da rua,
- Posso voltar?, perguntava o velhote à tia marta, e enquanto procurava no pulso o mostrador das horas segredava que até pela companhia valia a pena, e fico com nada, e nada, e o pior é ter de subir cinquenta degraus até adormecer nos teus braços…
E fingir, e gritar, E que eu também,
Foi bom,
- Só quero amealhar,
E esquecer-me que sou velho, e esquecer-me da solidão das árvores estacionadas no rio, E que eu também, Foi ótimo, e esquecer-me do sussurrar das gaivotas em frente à janela e esquecer-me dos ais e dos uis e esquecer-me dos vinte anos a subir e a descer as escadas amarrotadas da vida…
Cerrar os olhos, e com a mão apagar o sorriso da noite.
(texto de ficção)