Ontem quando acordei estava dentro de um oleado, abro os olhos e uma finíssima pelicula de nevoeiro poisava nos meus olhos, desenlaço as mãos, e percebo que estava dentro de uma câmara frigorífica,
Ontem morri,
- Causa da morte Saudade escrevia o médico legista no papel suspenso da mão encardida pelas geadas do inverno agreste de Trás-os-Montes e segredava à colega que nunca tinha observado um cadáver em tão mau estado Nunca observei um cadáver em tão mau estado Triste Muito Triste,
Ontem morri antes de acordar a manhã e no preciso momento que me evaporo sonhava com malmequeres que passeavam sobre o mar,
- Nunca observei um cadáver em tão mau estado, Triste, barba do tamanho de ramos de amoreira, cabelo solto devido ao vento que bate na janela virada para a garagem onde dormem os carros funerários, e que se passeavam sobre o mar,
Os malmequeres de mão dada aos silêncios em desejo, gotinhas de água saltitavam no corpo dela, e a colega do médico legista tapava as narinas devido ao cheiro nauseabundo do meu corpo, e ontem morri antes de acordar, e sonhava,
- Hora provável da morte cerca das sete horas e trinta minutos, sexo masculino, um metro e setenta e cinco centímetros e aproximadamente sessenta e sete quilogramas de peso, olhos castanhos, e sem cabelo,
A serra elétrica que entra no meu crânio e um ovo de perdiz a dissolver-se dentro de mim, a serra elétrica a romper-me e aos poucos o médico legista a retirar o pedacinho circular, os miolos aflitos no néon da morgue, e no meu peito a colega do médico legista com uma tesoura de poda a vindimar-me os fios escuros das costelas, e o alcatrão dos meus cigarros embatem no teto,
E caiem sobre a esponja amarelada da minha gordura,
- Olhos castanhos, causa provável da morte Saudade ou Solidão, Desculpe colega não percebi a médica legista que mergulhava as mãos nas minhas vísceras,
E caiem sobre a esponja amarelada malmequeres que passeavam sobre o mar,
- Ou morreu de saudade ou de solidão mas inclino-me mais para a Solidão, e a solidão dói e mata dizia a médica legista para o médico legista,
Porra… murmuravam os meus lábios quando se aproximava o serrote de carpinteiro,
Ontem morri, e por voltas das sete horas e trinta minutos senti a velhinha vestida no negro da noite passear-se no corredor de minha casa, levantei um pouco a cabeça e voltei a poisa-la sobre a almofada embebida na saudade das manhãs quando olhava o mar, e o cangalheiro bateu à porta Dá licença doutor? E o doutor de serra elétrica na mão que sim e pode entrar, e o cangalheiro se faltava muito para terminar Falta muito doutor? E que não, é só fazer as bainhas e coser os cromados,
- E vestir e desfazer a barba e pentear os poucos cabelos que sobraram da serra elétrica respondo-lhe eu,
E enquanto cosiam as mantinhas do meu corpo eu pensava e sentia o frio da pedra mármore nas minhas costas e pensava na gripe quando estivesse debaixo da terra junto à raiz de uma oliveira,
- E sonhava quando morri, Muito Triste,
Ontem morri antes de acordar a manhã e no preciso momento que me evaporo sonhava com malmequeres que passeavam sobre o mar,
E morri que sonhava,
E sonhei que morri,
E ontem nem sonhei nem morri,
Adormeci docemente dentro de um caixão decorado com solidão e saudade, e sonhava quando morri Olhos castanhos, causa provável da morte Saudade ou Solidão, sonhava com malmequeres que passeavam sobre o mar… Muito Triste.
(texto de ficção)