Dormir no chão e sentir os teus braços poisados no meu peito, e pela janela finíssimos fios de luz mergulham no teu corpo, ausentas-te de mim e começas a voar,
As borboletas da noite que brincam nas flores de néon e sinto os teus braços a evaporarem-se do meu peito, o teu corpo eleva-se e as tuas asas mergulhadas no arco-íris soltam-se da sombra do candeeiro da sala (não sei se existe um candeeiro na tua sala mas quem ama os livros e a leitura precisa de um candeeiro), e as tuas asas mergulhadas no arco-íris soltam-se da sombra do crucifixo pendurado na parede (e talvez não um crucifixo na tua sala), e as tuas asas mergulhadas no arco-íris soltam-se da sombra dos meus braços, e finco os meus olhos no teto do céu,
As flores de néon mudam de cor, vermelho azul amarelo verde azul azul laranja e invisível,
- Cansadas e cansadas e cansadas nós as flores de néon,
Ausentas-te de mim e começas a voar sobre os edifícios encalhados no cais de embarque da cidade, centenas de sombras à espera de um ferro velho e os caixotes com o que sobejou (meia dúzia de nada) amontoam-se na esperança e o ferro velho olha-me,
- Olá miúdo,
E Cansadas e cansadas e cansadas nós as flores de néon, e os meus bracinhos prendem-se à cintura da minha mãe, ela chora e finge que sorri,
- Estás a chorar mãe? E que não diz-me ela A chorar eu? Foi um inseto que embateu no meu olho,
E percebi que chorava, e percebi que quando olhava para longe se despedia da infância e de vinte anos de cacimbo e de vinte anos de capim e de vinte anos de mar e de vinte anos de Mussulo,
E de vinte anos de nada,
- Olhas-me enquanto atravessas a janela,
Dormir no chão e sentir os teus braços poisados no meu peito, e de vinte anos de nada, e pela janela finíssimos fios de luz mergulham no teu corpo embebido nas gotinhas de suor da noite,
- Olá miúdo Oiço a voz do ferro velho e as lágrimas da minha mãe Estás a chorar mãe? E que não diz-me ela A chorar eu? Foi um inseto que embateu no meu olho,
Uma gaivota que poisa no guindaste enferrujado pelo silêncio das ruas despidas de gente e vestidas de dor e sofrimento e cansaços e desilusões,
- Vinte anos de nada,
Puxava de um cigarro e sentia os soluços do miúdos a tombarem sobre os caixotes de madeira adormecidos na despedida, e se despedia da infância e de vinte anos de cacimbo e de vinte anos de capim e de vinte anos de mar e de vinte anos de Mussulo,
- E de vinte anos de flores de néon,
Que mudavam de cor conforme a tosse da âncora do ferro velho, vermelho azul amarelo verde azul azul laranja e invisível,
Até que se confundiam com o mar,
Os caixotes balançavam na maré quando o ferro velho em pedacinhos começou a erguer-se e as ruínas da cidade a diminuírem, e desapareceram dos olhos do miúdo,
- Olá miúdo,
As ruinas da cidade que se misturam nos gritos do guindaste enquanto o ferro velho à boleia de um rebocador envelhecido nos lábios do mar e caminha e caminha e desaparece no cacimbo, e vinte anos de nada,
- Os meus calções enrolam-se nas tuas asas mergulhadas no arco-íris e soltam-se da sombra dos meus braços finíssimos fios de luz que abraçam o teu corpo, e finco os meus olhos no teto do céu,
Beijos grandes fofinhos a ver se ficas um doce de homem quando as borboletas brincam nas flores de néon,
Pego numa estrela e peço um desejo,
- Desejar-te eternamente,
Silabas da noite.
(texto de ficção)