Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

09
Out 11

Tropeçava no vento e quando se encostava à madrugada desciam silêncios do céu, estendia os bracinhos com um sorriso e tocava nas estrelas,

O meu pai,

Nas estrelas a fumar cigarros e a recordar a infância que se ausentou muito antes de ter nascido, o meu pai de musseque em musseque e de picada em picada, o meu pai que se escondia no cacimbo,

Quando no capim cresciam os meninos que dormiam de pé, que se escondia no capim e adormecia debaixo dos coqueiros embebido na maré,

O meu pai,

Sem fé,

Ausente da mãe,

De pé ente pé e subindo ao trigésimo andar da noite e depois de ser expulso da noite descia e descia e descia,

As escadas trémulas em madeira,

E acordava no Mussulo,

Chamava as gaivotas e vinham até ele os pássaros negros, mulheres de luto e que choravam os filhos e que choravam os maridos e que choravam,

- Maldita guerra sem sentido ouvia-o eu enquanto lhe apertava a mão e fazia caricias nos barcos estacionados junto às mangueiras,

E todas as guerras não fazem sentido,

O meu pai,

Que atravessa o rio e quando acorda percebe que está ao antigo Congo Belga à procura de nada,

E caminhava e caminhava e caminhava,

À procura da mãe,

E encontra um cacho de bananas e arroz com chouriço e arroz com chouriço e arroz com chouriço,

Trinta dias e trinta noites dizia-lhe o médico de receituário na mão,

- E antes de deitar,

Deambulava pelos canteiros de malmequeres que viviam junto à baía, sentava-se numa cadeira e esperava que a noite se escondesse numa caixa de sapatos,

Tropeçava no vento e quando se encostava à madrugada desciam silêncios do céu, estendia os bracinhos com um sorriso e tocava nas estrelas,

E uma e outra e mais outra,

Cerrava os olhinhos,

E ausentava-se da infância,

- Nasci bebé e ao outo dia já era homem,

E ao outro dia de musseque em musseque e de picada em picada,

Como as abelhas deitadas no pólen do amanhecer,

O meu pai,

- Nasci bebé e ao outo dia já era homem,

E o meu pai que se escondia no cacimbo e evaporava-se nos céus de Luanda todas as noites, e à meia-noite ancorava-se nele o cheiro de África,

Da terra húmida,

E de papagaios de papel que um miúdo erguia no céu,

Eu.

 

(Texto de ficção)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 00:06

Outubro 2011
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