É-me difícil ser eu
O eu defeituoso que vive numa caixa de sapatos
Com uma tampa de vidro
E paredes de papel,
É-me difícil ser eu,
Duzentos e seis ossos e uma cabeça de abobora
Dois braços finos como um pincel
E nas pernas as raízes apodrecidas do desassossego,
E tenho de ser eu,
É-me difícil ver-me ao espelho da noite
E pela tampa de vidro
Da caixa de sapatos onde vivo…
Descem tentáculos
Que se enrolam aos meus duzentos e seis ossos
E levam as minhas mãos…
Os tentáculos comem as minha mãos,
E fico proibido de abraçar
O mar e o Tejo,
Em seguida,
Os tentáculos comem-me os olhos…
E deixo de ver as gaivotas
E deixo de ver o meu corpo seminu
Embrulhado nos lençóis da manhã
E deixo de ser eu,
É-me difícil ser eu
O eu defeituoso que vive numa caixa de sapatos
Com uma tampa de vidro
E paredes de papel,
O eu sem braços
O eu sem olhos
O eu sendo eu não sou o eu…
E as paredes de papel começam a arder,
A noite esconde-se na Ajuda,
E procuro o meu corpo
Dentro do estômago do Tejo
E vejo um outro eu com o meu corpo,
É-me difícil ser eu
Dentro desta caixa de sapatos
Com tampa de vidro…
E paredes de papel,
E hoje vivo sem corpo…
À procura dos meus braços
À procura dos meus olhos,
Dentro de uma caixa de sapatos com uma tampa de vidro e paredes de papel…