Olho pela janela, chove. Coloco os óculos no meu rosto emagrecido, estou magro, às vezes cansado, faço umas brincadeiras com a caneta e dou conta que na minha mão nada, comporto-me como se lá tivesse poisada uma pena, dou umas baforadas no cachimbo de água, olho fixamente para a folha de papel que em cima da secretária adormece, e aos poucos as palavras começam a alimentar-me o cansaço,
“ Junto ao mar, 26 de Março de 2011
Meu querido,
Toda a tarde esperei por ti, mas tu hoje não vieste. Senti a tua falta meu desespero, e recordei quando entras em mim e dentro da minha cabeça ditas as palavras que eu escrevo no vento, mas tu meu desespero, tu hoje não vieste.
Não comi quase nada hoje.
A tristeza entrou-me pela porta, e reparei que no jardim as árvores estão tristes, talvez porque choveu, talvez porque hoje é sábado.
Não comi quase nada hoje, e durante a tarde, à espera que viesses, andei descalça junto ao mar, e a areia alivia-me este cansaço que dentro de mim habita, este desassossego de não estar feliz nunca, de não conseguir adormecer sem os teus carinhos, sem as palavras que me ditas e eu as escrevo no vento.
Toda a tarde esperei por ti, mas tu hoje não vieste. Senti a tua falta meu desespero, e não percebo porque chove tanto e o mar tão calmo, o mar calmo e a minha mão espera pela tua, e sei que te escondes em qualquer pedacinho desta praia, mas por mais que eu olhe, não te encontro.
Meu querido desespero, se me estás a ouvir vem junto a mim, pega na minha mão, pega na minha mão e leva-me para dentro do mar; se me estás a ouvir, preciso de ti…
Eu sempre tua,
Marilu”
In Crónicas de um Travesti; carta ao desespero (3)
E o cansaço disperso no pavimento como se o sol tivesse deixado de acordar, olho pela janela, chove. Coloco os óculos no meu rosto emagrecido, estou magro, às vezes cansado, poiso a caneta na secretária e enquanto a minha mão fica em liberdade, o poema sobe-me pelo braço até à boca, e nos meus lábios soltam-se sílabas, e sinto as frases voarem pelas paredes do meu quarto, e o poema é poema,
Junto à ribeira
Deixo a minha mão adormecida
E nos meus olhos
Vive o monstro da noite
Sento-me no xisto esquecido pela tempestade
E as lágrimas invadem o meu rosto
Junto à ribeira
A minha mão que se afoga na água da madrugada
E o meu corpo despede-se de mim
Separa-se em pedacinhos
Raios de sol
Que pela manhã entram no meu quarto.
Olho pela janela, chove. Pego nos óculos e poiso-os na secretária, dou duas baforadas no cachimbo de água e fecho os olhos.
(texto de ficção)
FLRF
26 de Março de 2011
Alijó