Quando me tocas sinto-o como se acordasse no meu interior uma mão cheia de plumas com gotinhas rosas de pequeníssimos silêncios, me tocas, quando oiço o desenfreado uivo da maçã juntamente com duas ou três laranjas e algumas nozes, quando oiço a locomotiva da tarde a despenhar-se contra os rochedos da noite, choras, metes-te na cama e colocas sobre ti uma laje maciça de aço inoxidável com parafusos de solidão e dizes baixinho, oiço-o, e dizes baixinho
- Amo-te
E dizes baixinho dentro das profundezas terrestres do centro da cidade que ontem choveram lágrimas de luz sobre as árvores infelizes do Outono, oiço-o, Amo-te prenuncias entre plumas e pedacinhos de papel encarnado com bolinhas cinza, e hoje não tenho cigarros, digo-o, oiço-te com o medo da morte desejada pelas janelas do sótão virado a sul, o telhado amuado como duas crianças antes do lanche, servem-se na esplanada de Belém torradas e café com leite e sinto-o, sinto-o sentado nos meus joelhos de vidro,
- E digo baixinho que ontem, uma semana qualquer do passado longínquo ouvi pela primeira vez a palavra amor prenunciada pela gaivota de quatro ventos e três sandálias de couro, o papagaio de papel alimenta-se da tua misera mão de criança recheada de sonhos e sílabas de capim, o doirado sôfrego dos sargaços abraços nas trapalhices escuras que o metropolitano inventa quando caminhas nos meus olhos de pássaro sem destino, Amo-te Ouvi-o e deixei de ver as marés quando me sentava nos finais de Janeiro e ao fundo da Calçada aparecias vestido de palhaço e trazias um chapéu de xisto, e eu, sozinha sentada nas ardósias das palavras inventadas por ti, e eu dizia-te baixinho, e eu acreditava que as tuas mãos eram de oiro maciço e que o mar às vezes entrava pela janela,
O desenfreado uivo da maçã juntamente com duas ou três laranjas e algumas nozes, os pássaros nas oliveiras infelizes com a chuva que prometeu cair no algodão dos barcos regressados dos poemas reescritos pela mão do palhaço
- Amo-te dentro das amoreiras das telas enfeitadas com lacinhos de hortelã e os uivos dos teus braços abraços pela mão do palhaço, o Mussulo desenfreado
O palhaço do homem de vidro nos lençóis de iodo à espera dos uivos apitos emagrecidos dos esqueletos com duzentos e seis ossos, na areia finíssima que o Mussulo deixou abandonado no rio e eu, eu via-te sentada na esplanada de Belém com o chá e as torradas disfarçadas de mendigos africanos descendo a avenida Almirante Reis, pensão Dona Xica às putas recheadas com pigmeus clandestinos, o palhaço está doente, feio, o palhaço procura incessantemente a amargura fictícia dos pequeníssimos cigarros, o Mussulo desenfreado na secretária sem alicerces, amo-te dentro das amoreiras das telas enfeitadas com lacinhos de hortelã e os uivos dos teus braços abraços pela mão do palhaço, o Mussulo desenfreado nas tuas mãos, e eu, e eu entrava dentro do mar com pintinhas encarnadas, e no entanto sentavas-te nos meus joelhos de vidro, as janelas da paixão, e o cata-vento adormecia dentro de casa
- E digo baixinho que ontem, uma semana qualquer do passado longínquo ouvi pela primeira vez a palavra amor prenunciada pela gaivota de quatro ventos e três sandálias de couro, o papagaio de papel alimenta-se da tua misera, duas horas de cansaço mútuo aos teus abraços de aço que o lume à lareira do ciúme desenhava as insignificantes estrelas amarelas,
O palhaço está doente, e do chapéu de xisto nasce a canção de amar, o palhaço inventa e desenha nas areias do Mussulo carícias com sombras de mangueiras, o triciclo está doente, o menino chora a partida do palhaço, o palhaço está doente quando às tuas mãos chegam as palavras escritas em papel de fim de tarde, o menino chora, doente, emagrece as arcadas circunflexas da paixão perdida no oceano deserto de areia, morreste, dormes incessantemente a morte que a noite semeia na seara do vento,
- Amo-te pela primeira vez quando abro a janela e tu sentado nas rochas que o silêncio construía com os meus sonhos, e eu, ouvia-o, ouvia-te, e eu escrevia nos vidros dos sonhos Amo-te tanto, tanto, noite clara de Outono,
A morte que a noite semeia na seara do vento, o menino chora, o menino doente, o palhaço está doente, que o a mar levou para longe de ti, servem-se na esplanada de Belém torradas e café com leite e sinto-o, sinto-o sentado nos meus joelhos de vidro.
(texto de ficção não revisto)