Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

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Simplesmente, sem saber que a vizinha do rés-do-chão, a tal a quem chamavam de cínica, porque possivelmente devido a um trauma de infância, ela, acreditava plenamente que no poupar é que estava o ganho, passava fome, alimentava-se muitas vezes imaginando alimentos, ou

Escrevendo nas paredes, pintando o mar, simplesmente, sem o saber, ela gostava do filho, que quis o destino, sempre o nefasto destino, que numa bela manhã partisse numa barcaça sem deixar rasto, desapareceu, evaporou-se junto aos rochedos, diluiu-se completamente como as ervas depois de uma noite de geada, cansava-se

Ou,

Ou vinham as nuvens cinzentas com os pássaros mortos, esvaziando, fumando, alimentava as conversas com simples palavras de algibeira, tocava o telefone, e sorria, e era como se o céu fosse só dela, gosto muito de ti, dizia-lhe

Gosto muito de ti,

O rapaz esguio, de olhar vazio, completamente sóbrio, o rapaz orgulhosamente só entre as conversas aparvalhadas da irmã a que todos diziam

Estás tão triste Margarida,

E ela respondia-nos que era devido ao silêncio e às noites de solidão que uma fada deixou ficar na casa onde viviam antes de acordar a manhã, nessa noite, lá fora, ouviam-se os candeeiros a petróleo em desassossegos mornos, amorfos, os fósforos tristes como os dias de Inverno, à lareira

Ou,

Gosto muito de ti,

Ou vinham as nuvens cinzentas com os pássaros mortos, esvaziando, fumando, alimentava as conversas com simples palavras de algibeira, tocava o telefone

Estou sim?

E do outro lado a voz roufenha do meu irmão, É a menina Margarida, sim sou, se responder acertadamente à minha pergunta e ligar para o número de telefone que lhe vou dizer, ganha

Nunca ganhei nada na vida, a não ser, fome, trabalho, porrada do marido,

Continuava ele, ganha duzentos e cinquenta euros, e eu pensava, davam-me jeito para pagar a prestação da máquina de lavar loiça, faça a pergunta, faça, faça

Ora então Menina Margarida Está pronta?

Sim Sim Simplesmente pronta,

Quem foi o primeiro Rei de Portugal?

Ora

Ou,

Estás tão triste Margarida,

D. Afonso Henriques?

Ora,

Ou, Sim Sim Simplesmente pronta,

E eu sabia que o meu irmão estava a mangar comigo, que não havia concurso nenhum, que o meu irmão não existia, desapareceu ainda eu pequena, recordo-me de ver a minha mãe a construir lágrimas nas lajes de mármore junto, junto aos rochedos, numa manhã de nevoeiro, a mesa no centro da cozinha, pratos, copos, talheres, ele

Desapareceram como se fossem nuvens cinzentas com pássaros mortos, D. Afonso Henriques? Não está, mãe? Não está, Pai? Também não, Cortinados? Ouviam-se as vozes do coro da igreja lá da aldeia

Também foram embora,

Raios,

Ou

Meu querido irmão? Também não está, Janelas com vidros? Não, Não estão...

E eu sabia que o meu irmão estava a mangar comigo, que não havia concurso nenhum, que o meu irmão não existia, que eu não existia, apenas o meu marido, apenas a fome, apenas a porrada, apenas

Também não está,

Ou

Raios,

No centro da cozinha, pratos, copos, talheres, ele de telefone não mão, e eu sabia que nem telefone tínhamos, miseráveis, nós, os vizinhos, as vizinhas, principalmente a do rés-do-chão, a tal a quem chamavam de cínica, porque possivelmente devido a um trauma de infância, ela, acreditava plenamente que no poupar é que estava o ganho, passava fome, alimentava-se muitas vezes imaginando alimentos, ou

Raios

Também não está,

Ou gritando pelas ruas da aldeia,

Adormecia fingindo que o Sol brincava no quintal, e nós não tínhamos quintal, adormecia fingindo que no centro da cozinha a mesa com quatro pratos de sopa, e nós não tínhamos pratos, e nós não tínhamos mesa, cozinha, e nós

Raios

Ou,

Não tínhamos sopa, telefone

Como podia ser o meu irmão do outro lado da linha, respondia-lhe

Deve ser engano,

Não tenho irmãos, só tenho uma cozinha inventada que tem no centro uma mesa em madeira, só tenho quatro pratos de sopa inventados, vazios inventados, e porrada por uma marido inventado, que a tempestade nunca mais o leva,

E me deixa,

Raios,

Ou,

Deve ser engano,

Os cigarros que nunca fumou porque nunca tive um irmão.



(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 20:12

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