Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

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Mar 13

foto: A&M ART and Photos

 

É vê-los partir como andorinhas envergonhadas, fogem, escondem-se como as ratazanas debaixo das pedras frágeis das calçadas de areia, inventam o sono, memorizam números como do primeiro beijo se tratasse, recordam as portas calafetadas e as janelas com os vidros estilhaçados pelos suspiros que o amor provoca nas primeiras horas da manhã, uma parede sem palavras escritas, mórbidamente suspensa numa corda de nylon, diz o povo que se enforcou, de uma casa, e do primeiro andar, uma varanda, uma grade em ferro, e imagens desfocadas, mortas, que nunca existiram na realidade, tocava o telefone, uma enorme e velha campainha como o sono quando demorava a regressar, aproveitava entre toque para contar os carneiros que deambulavam no tecto do quarto, e quase sempre

Faltam-me dois carneiros, E a esposa dizia-lhe Deixa lá marido, o que são dois carneiros?

Tirando a lã, nada,

E antes de pegar no auscultador mais pesado do que um saco de cimento, queixava-se da dor sobre os ombros, e mentalmente não se recordava de qualquer esforço extra, mas claro, como ele às vezes fazia menção de dizer, A idade avança e os meus ossos já precisavam de reforma, e de tempo, e de melancolia, e das noites, e avariadas quando entravam porta adentro um esquadrão de

Ratazanas?

E tirando a lã, nada,

Não, claro que não,

Pegava no auscultador e do outro lado da ardósia parede de gesso, ouvia a voz mais pequena quase do mundo, mas neste caso, a voz mais pequena da aldeia dos macacos, Tou, Tio?

Sim, Sou o Francisco!

Saudades tio, saudades...

Deve estar a precisar de dinheiro, só me conhece para isto, este miserável,

Diz lá rapaz, alguns problema?

(É vê-los partir como andorinhas envergonhadas, fogem, escondem-se como as ratazanas debaixo das pedras frágeis das calçadas de areia, inventam o sono, memorizam números como do primeiro beijo se tratasse, recordam as portas calafetadas e as janelas com os vidros estilhaçados pelos suspiros que o amor provoca nas primeiras horas da manhã, uma parede sem palavras escritas, mórbidamente suspensa numa corda de nylon, diz o povo que se enforcou, de uma casa, e do primeiro andar, uma varanda)

Era só para o ouvir, respondia-lhe ele, e claro, pensativamente vinha a desconfiança, porque ninguém telefona a outro alguém, apenas para o ouvir, ou

Saudades da sua voz,

(Chaleiro)

Ou,

Ratazanas?

E tirando a lã, nada,

Não, claro que não,

Saudades, claro, também eu, do granito clandestino de que eram construídas as clarabóias com pedaços de cartão reciclado, e quando alguém batia à porta, ele

Tou?

Sou eu, tio Francisco!

Agora este deve pensar que sou o novo Papa, Sou Francisco, claro, mas um simples Francisco, menos do que as flores e os pássaros e as pontes, menos ainda do que as

Ratazanas?

Claro, sim, talvez,

É vê-los partir como andorinhas envergonhadas, fogem, escondem-se como as ratazanas debaixo das pedras frágeis das calçadas de areia, inventam o sono, sinto nas minhas coxas calcinadas pelo odor do primeiro beijo as nuvens de porcelana que Deuz se esqueceu sobre a mesa da cozinha, sentada, não sei, o que fazer

Talvez, claro, quem sabe,

Porque não me amas, e confesso que não sei responder-te, não sei, tal como tu não consegues perceber a razão do teu sobrinho segredar-te que tem

Saudades?

Sim, claro, talvez,

Não sei,

Tou? Sou eu tio Francisco, Diz lá rapaz?

Digo,

Quem pode ter saudades da voz de um homem velho, cansado, com duzentos e seis ossos pesados como chumbo, húmidos, pronto no cais de embarque, quando ele tem a certeza que não regressará mais

Aquela manhã de Novembro,

Aquele sonho de açúcar,

Ou,

O toque do telefone, Saudades da tua voz, tio Francisco, nada mais...

Ou,

Saudades de voar, querido sobrinho.

 

(ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 20:22

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