Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

03
Abr 13

foto: A&M ART and Photos

 

(terça-feira de Abril)

 

Lembras-me a Catedral dos cigarros sem filtro

com as suas quatro janelas de acesso ao inferno,

lembras-me a luz desperdiçada pelas frestas do desejo

sabendo tu que lá fora há uma boca com fome,

de braços abertos, e agarrado à pernada da árvore junto ao cemitério,

 

Não cessa de chorar

nem entra na escuridão enquanto não se alimentar,

não acreditas nos plátanos sobre os bancos de madeira

que o jardim da Vila esconde, e te sentavas, como uma flor de livro na mão,

não cessam nunca, essas bocas, às vezes, poucas e loucas,

 

Às vezes

triângulos de tédio abraçados a cubos de gelo,

às vezes, às vezes sinto-me a caminhar sobre o Tejo,

sou uma gaivota ou um velho cacilheiro,

às vezes, sou eu mesmo, um velho desiludido, um velho sentado no infinito do abismo...

 

Às vezes, visto-me, sim, também me visto e lavo e tenho higiene,

como estava dizendo, às vezes, visto-me de ponte iluminada pelo teu azul

que suspendes no teu corpo de texto ficcionado,

às vezes, minto-te dizendo-te que estou bem alimentado,

mas não estou, porque estou cansado, ou... porque... apenas me apetece dizer-te que sim,

 

Que comi as bolachas e bebi o leite com chocolate,

que fumei cigarros imaginados, porque deixei de fumar,

que, às vezes, (isto só para nós) não me apetece sorrir nem falar nem escrever,

e escrevo, sem o saber, sem perceber porque o faço...

porque às vezes, às vezes o que eu queria era voar, e deixar de ter ossos e olhos verdes...

 

 

(permita-me reflectir sobre os seus lábios, sabendo que não me pertencem, mas como é usual vê-los passear em frente à estação de Cais do Sodré, tenho a dizer-lhe a si e a eles – Lábios, que a minha vida melhorou significamente após o encontro entre os meus olhos verdes e os seus lábios azuis, de tal forma, que hoje, terça-feira, posso garantir-lhe que nunca mais me doeram as costas, a rótula do joelho esquerdo, e melhor ainda, a dor que sentia na perna direita, essa, desapareceu como desapareceram as moedas de Euro que me acompanhavam na algibeira, mas aí, a responsabilidade não é da menina, nem tão pouco da cor da sua pele, apenas deve-se

- à má gestão do meu misero dinheiro,

um dia quis ser bailarino, depois, costureiro, nunca dancei, mas garanto-lhe que cheguei na infância, e tenho como testemunha a minha querida mãezinha, a desenhar vestidos e a confeccioná-los, e tão giros que ficaram... tinha um boneco, a que parvamente o apelidava de chapelhudo, servia-me de modelo, e amigo, confidente, e personagem de texto não escrito, apenas falado entre mim e as pombas e as galinhas, e tudo isto, num enorme quintal, em Luanda, debaixo das mangueiras, tínhamos um portão de entrada, em ferro, que dava uma certa coloração – Não filha, não é ao seu corpo! - ao bairro, estava a falar do Bairro Madame Berman, claro, claro que quando chovia ficava encerrado em casa a desenhar com carvão nas paredes do corredor, quarto e casa de banho, e não me perguntes porque o não fazia nas paredes da sala, não o sei explicar,

- e hoje não me parece terça-feira,

e quando te falava no portão de entrada, claro minha filha, referia-me à chegada do avô Domingos, coitado, tão cansado de andar pelas ruas da cidade com um cordel a puxar um machimbombo, abria-o – sim filha, o portão, o que querias que fosse – voltava a fecha-lo, pegava-me ao colo, e, e dava-me um beijo,

- hoje?

amanhã, talvez me recorde,

- e nunca mais soube a cor do céu e vi o sorriso do mar.)

 

 

E deixei de amar, ser novamente a criança com os calções e as sandálias de couro,

não pensar em livros, em termodinâmica ou mecânica, ou literatura, ou amor,

e deixei e desaprendi que o teu corpo reabsorveu o azul do céu e o sorriso do mar,

e..., que as árvores (não vais acreditar) que as árvores, agora, pensam como nós,

e que amam, como nós, não hoje, mas quando ontem era ontem, e não terça-feira...

 

(não revisto, ficção)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:26

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