Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

19
Nov 13

foto de: A&M ART and Photos

 

Tínhamos um espelho chamado Fantasia, dormia connosco e das poucas vezes que lhe ouvimos um sussurro ou um desabafo... ou uma palavra

Cansaço,

Tínhamos uma janela virada para o rio, do nosso quarto apenas conseguíamos ver um dos braços do rio, e ao de leve... uns finíssimos dedos em algas masturbadas como linhas paralelas, confundíamos os finos dedos como linhas paralelas com os tristes carris de regresso a casa, dormitávamos, sonhávamos e acordávamos, e quase durante uma hora havia um filme só nosso que vivia dentro do nosso peito, o meu era a preto-e-branco, e o dela

Colorido,

As paredes que ultrapassávamos como pequenas limalhas de ferro ensanguentadas de cinzentos cabelos do transeunte indignado e anónimo que viajava quase sempre ao meu lado, não falava (como o fazia antes de adormecer o espelho do nosso quarto) e fumava cigarros de enrolar, pedia-me lume

Deixei de fumar,

E continuava silencioso como os cadáveres do nosso armário que desde sempre estiveram no corredor de nossa casa, antes de regressarmos, em Angola, depois, depois viemos encaixotados com pedaços de madeira que roubamos, inclusive algumas portas do interior, e algumas tábuas do alpendre onde guardávamos o triciclo, as pombas e algumas galinhas e o meu

Chapelhudo?

Não, não, esse não

Chapelhudo, orelhudo... e a chuva esfarelava-se sobre nós, tínhamos a ressaca das tardes de sábado, e tínhamos

Dá-me lume se faz favor?

Lamento, deixei de fumar, lamento... deixei de viver, lamento... deixei de amar, de ser amado...

Chapelhudo, orelhudo... e a chuva esfarelava-se sobre nós, tínhamos a ressaca das tardes de sábado, e tínhamos as multiplicações semanais das

(como o fazia antes de adormecer o espelho do nosso quarto)

Fitas a preto-e-branco, ela, colorido, imagens rolantes que descaíam dos edifícios negativos com gravata embebidas em bolas de naftalina, o cheiro, o cheiro a ratazanas sobre os cubos de queijo esburacados, envenenados... tínhamos um espelho chamado Fantasia, dormia connosco e das poucas vezes que lhe ouvimos um sussurro ou um desabafo... ou uma palavra, ou simplesmente

Nada,

Ou simplesmente

Nada,

Ou... esperavam (ou simplesmente... nada), não, não

Não?

Ou simplesmente... lamento informá-lo... mas hoje não temos carris na frigideira com molho de solidão

Porra...

E o que faço eu aqui?

Caminho, procuro os dedos finíssimos do rio em desejo, sentamos-nos um sobre o outro, enrolamos-nos e

Tem lume se faz favor?

Deixei...

E víamos,

E ouvíamos,

E... os imbecis homens de chapéu igual ao do Chapelhudo a fotografarem-nos, como se

Eu e ela

Fossemos dois corpos, com esqueleto, com cabeça, carne apodrecida, carne desfigurada... como se eu e ela fossemos... um espelho chamado Fantasia

E éramos só,

Eu e ela,

Dois filmes fugidos da sanzala dos grilos...

 

 

(não revisto – ficção)

@Francisco Luís Fontinha – Alijó

Terça-feira, 19 de Novembro de 2013

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:48

Novembro 2013
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9





Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Posts mais comentados
mais sobre mim
pesquisar
 
blogs SAPO