Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

20
Mai 11

Pela janela vejo uma rosa amarela que sobre a água imaginária do rio dança na espuma do fim de tarde, diz-me adeus, e dos seus lábios crescem nuvens cansadas e quase a desfazerem-se em lágrimas, um carro aborrecido no parque de estacionamento espera e desespera, e deita fumo pela boca, e a rosa amarela aos poucos levada pela corrente do vento, dentro de mim, dentro de mim o cortinado mistura-se com as dezanove horas e quero que o relógio adormeça, e fique suspenso no fim de tarde, mas o relógio não me obedece, e caminha loucamente em direcção à noite.

 

Ele no fim de tarde corria no campo de centeio junto à casa, escondia-se na sombra de um casebre abandonado, e deitado junto aos alicerces envelhecidos pegava numa pedra e começava a escavar na terra húmida, acabava de chover, e na terra as camadas de silêncio começavam a transpirar, tinham febre, tossiam, e da boca escorria uma substância mucosa, mais parecendo palavras emergidas em água, ele às voltas da estátua da Maria da Fonte, e hoje, hoje dizem que um centro comercial se ergue até à lua, como ela está diferente, a cidade

 

- e a cidade em vogais desconexas chama-me e grita-me, e quero ir, e eu vou, eu vou à procura do meu triciclo que dorme no meu quintal, eu vou, eu vou pegar no cordel que deixei preso no portão do meu quintal, e lá bem alto, lá bem alto o meu papagaio de papel à minha espera, e tenho medo que ele já não se recorde de mim e me tenha esquecido, eu era tão miúdo, eu era tão menino…

 

Pela janela vejo uma rosa amarela que sobre a água imaginária do rio dança na espuma do fim de tarde, a claridade do dia começa a fundir-se no espelho do meu quarto, e dentro do guarda-fatos procuro as minhas mãos, e sem elas não consigo pegar na rosa amarela, tocar-lhe na boca, e não as minhas mãos, as minhas mãos em cima da mesa-de-cabeceira à minha espera,

 

- eu era tão miúdo, eu era tão menino, e tenho medo que a cidade me tenha esquecido enquanto eu envelheço ao som da neblina, ela à minha espera,

 

à minha espera a contar os carros que correm em direcção ao Grafanil, perco-me na contagem, eu era tão miúdo, eu era tão menino, e eu mal sabia contar…

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

20 de Maio de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:54

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