Chove torrencialmente e na rua as pedras transpiram pelas frestas da calçada, um roedor espreita-me de relance à entrada da sarjeta e tira-me as medidas, 1,75 m e 72 kg, estás tão magro Francisco, eu magro, não, sempre fui assim, e sempre fui assim, o roedor fixou-se em mim, não me admira, às vezes pergunto-me se eu terei mel porque as abelhas sempre à minha volta, e eu não flor, eu não mel, eu uma árvore onde poisam pássaros e cagam nos meus braços, sempre fui assim, os pássaros sempre adoraram cagar sobre as folhas que cobrem o meu tronco, já fizeste alguma coisa hoje, não nada, isto tá fodido é a crise, eu bem estendo as mãos mas as mãos sempre vazias, qualquer coisinha para comer, vai trabalhar pá, amigo ao menos um cigarrinho, vai-te foder, e eu vou à procura do abrigo das platibandas, e enquanto vou eu fornicado, perco os clientes que correm apressadamente e fogem dos pingos que a tarde constrói nos ponteiros do relógio, isto tá mesmo fodido hoje só cinco euros, e não dá para nada…
Chove, chove e eu não me dou conta, eu tão magro que os pingos atravessam o meu corpo como se eu fosse um passe-vite enferrujado e pendurado nas paredes da cozinha comidas pelo tempo, a cozinha vazia, não cozinha, a cozinha à minha espera, e eu entro em casa e vou directo ao quarto, deito-me sobre a cama, o meu corpo parece um objecto que acaba de sair da água, o meu corpo suspenso nos olhos do roedor, estás tão magro Francisco, eu magro, não, sempre fui assim, e sempre fui assim, e nas pedras da rua vejo o silêncio do meu corpo e a ausência das minhas mãos, hoje tá fodido, é a crise, só ainda fiz cinco euros, e eu nem isso amigo, hoje nem isso…hoje os pingos que a tarde constrói nos ponteiros do relógio.
(texto de ficção)
Luís Fontinha
23 de Maio de 2011
Alijó