Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

09
Ago 12

Desapareceram todas as ruas da aldeia

e os dias deixaram de acordar

há mais de uma semana que é sempre noite

sem estrelas

sem luar

e eu

e eu fico à janela todas as horas

todos os minutos

e todos os segundos...

a olhar para a tristeza da vida

pintada de azul

com pequeníssimos silêncios de saudade.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 11:08

29
Mar 12

As cabras

Os queijos

O coalho líquido

E o bode…

Todos à porta da cidade

A miúda parva de espiga de milho na mão

Desce a calçada

E poisa no mar

Acorda o vento na saia da miúda parva

(E as cabras

Os queijos

O coalho líquido

E o bode…

Todos à porta da cidade)

Desce a calçada

Solitariamente como se fosse uma orquídea

Ou um sorriso de noite

Solitariamente como se fosse um orgasmo literário

Que cresce dentro de um livro de poemas

As mãos cansadas

Os lábios enfeitados com mel

E da boca oiço a noite que acaba de acordar

E voa

E voa em direção ao mar

(A miúda parva olha-me e dos lábios enfeitados com mel

Oiço as palavras de incenso – Se te fosses foder Francisco!)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:12

19
Jul 11

A pérola embriagada das manhãs cânforas do meu olhar,

O rosnar do cavalo a diesel de boca aberta a engolir o milho da manhã, a madrugada despede-se e aos poucos a claridade abraça-se aos pinheiros, nas fendas do granito do muro de vedação da leira um coelho esconde-se, e ao lado do tanque uma perdiz em movimentos femininos, de sapatos altos e minissaia, nos lábios poisa o batom em fogo do sol que se esconde nas ripas do canastro, e nos cabelos prende uma rosa branca, a perdiz saltita, a mulher emagrece nas sombras das ramadas, as videiras coçam-se ao arame e encostam-se aos esteios de cimento, na mulher cresce um sorriso de bom dia e a perdiz mingua junto à água que caminha rego fora, tropeça numa pedra, desvia-se, e cai sobre a leira seguinte, mistura-se nas fezes da passarada e demais habitantes da aldeia, e em forma de cotovelo acaba por se perder na poça, a mulher olha-se no espelho que em tentativas demoradas pesca da carteira de couro fingido, e dos olhos as barbas de milho realçando-lhe a cor infinita do olhar, toca nos lábios argamassados de vermelho com a língua, dobra a língua à maneira de trapezista de circo, entra dentro da boca, toca num dente em convalescença, o corpo fino e esguio nos desperdícios das coxas, ouve-se um Ai e certamente a perdiz, a perdiz com as patas enterradas no rego, agonia e afoga-se, e a água dissolve-a nas alavancas das pernas da mulher, a mulher geme, ensaia alguns passos e os saltos esguios de eucalipto sepultam-se na terra encharcada de suor,

O motor do cavalo cessa repentinamente e sobre a cabeça as nuvens preguiçosas das horas que se aproximam da leira, o velho desce do cavalo, e em voltas completas e de mãos na cabeça acredita que alguma coisa grave aconteceu, e pensa com o auxilio da boina às riscas que quando se embebeda esconde no bolso das calças calcinadas pelas geadas do inverno, Será cansaço?, o velho começa a comer os cigarros sem filtro e novamente a tentar perceber o amuo do cavalo a diesel, Será os filtros semeados de poeira?, não,  não pode ser Ainda ontem os limpei com o compressor!, mas que raio suplicava ele deitado na poeira, a mulher ao longe grita-lhe E não será fome?, Fome, repete ele!, sim fome, mas que porra se ainda antes de vir lhe dei de comer…, o feno verde que a bomba manual da boca puxou do tambor de duzentos litros e os vómitos e o enjoo e a final e derradeira cuspidela para o chão do diesel amargo do feno.

A mulher pede socorro à medida que os sapatos de salto alto descem lentamente as profundezas dos terrões ressequidos da manhã, o velho finge que não ouve e a preocupação dele a razão do cavalo deixar de caminhar, a perdiz estende o pescoço até às nuvens e em pequeníssimas bicadas o algodão doce do céu, o milho entalado na garganta do cavalo e um líquido de espuma começa a sair pelo canto da boca, as convulsões, a dor no peito, e o velho enquanto coça a cabeça polvorizada de pó pergunta à mulher que só se veem os cabelos e o resto do corpo desapareceu, Não será enfarte?, Enfarte?, Não me parece, responde ela de olhos presos a uma toupeira que a olha e lhe faz caretas e lhe arreganha os dentes, Perdiz, ajuda-me!, e a perdiz que dorme com a cabeça poisada no lodo da poça,

E a mim, quem me ajuda?,

O cavalo em gemidos e pelo intestino pingos de ferrugem a evaporarem-se na leira seminua, o velho sobe para o cavalo e novamente dá à chave e o silêncio dos pássaros que escondem o ensurdecedor gritar do cavalo, o velho desiste e desce do cavalo, puxa de um cigarro, pegas nos óculos e aponta as lentes ao sol e com um compasso de espera acende o cigarro, o fumo cobre-lhe a cabeça e da mulher já nem os cabelos sobre a terra,

Há dias que vale mais não sair de casa!, o velho em lamentos para o cavalo, e o colho que espreita da fresta do granito e em forma de gozo pergunta ao velho se o cavalo está vacinado, o venho poisa o cigarro e baixa-se, pega num pedacinho de seixo e em pontaria desafinada em vez de acertar no coelho ouve a janela virada para a leira a despedir-se da manhã, o coelho ri-se, e o velho tomba no chão, de barriga para o ar,

E começa a ouvir o rosnar do cavalo a diesel de boca aberta a engolir o milho.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 12:21

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