Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

22
Abr 13

foto: A&M ART and Photos

 

O cubo corporal suspenso numa árvore de papel, a pele mistura-se dentro da sombra desenhada com as lâminas de barbear, escrevo folhetos, folhetins, panfletos, em promoção conseguia-se uns descontos confortáveis, três panfletos por cinco contos, barato, fazíamos sempre uma excelente compra, e se algo corresse mal, claro, sempre por culpa dos ciganos – A quem compraste, pá? - claro, a um cigano que andava a passear pela rua – Qual rua? - uma, qualquer, uma rua sem asas, em voos de liberdade condicionada, uma corrente de aço prendia-nos aos ventos do deserto, os barcos, havia, folhas de alumínio, tão grandes, grandes, enormesss, do tamanho da noite

(sem estrelas, e faço-o propositadamente para que os corpos mergulhados no cubo invisível, a carne embalada no berço das poucas coisas possíveis e imaginárias, ripas de madeira, sem pintura, quatro pregos, pregos em aço, não dos outros, em carne e osso, na moldura a fotografia dos teus olhos, apenas, negros, negros olhos, penumbra de ti quando descem as calçadas de Lisboa pelo teu corpo travestido, e antes de caírem no pavimento abriam-se-lhe das cabeças ocas com pilares de areia, o cubo, e o rio...)

Do tamanho do homem com braços de noite, com pernas de noite, com um esqueleto de noite, abraçados, apaixonados, dentro, fora, encarcerados, com grades de madeira, lá fora as crianças da escola pintavam o mar no tronco das árvores, e cá dentro, havia entre nós uma mistura fria, havia um líquido esbranquiçado que nos untava, oleava, e depois, depois vinham os dias, primos das calçadas de Lisboa, primeiro a Ajuda, depois uma outra qualquer, não interessa, e depois via-se o rio a sair da algibeira de uma mulher com cabelo preto, olhos castanhos e corpo esguio, como uma enguia saltitando as margens junto a Cais do Sodré – Amor, estou quase a chegar – e

(sem estrelas, e faço-o propositadamente para que os corpos mergulhados no cubo invisível, a carne embalada no berço das poucas coisas possíveis e imaginárias, ripas de madeira, sem pintura, quatro pregos, - Sim, meu amor, sim! - o inacreditável parvalhão esperava pacientemente pelo reencontro das fotografias de Lisboa com as fotografias de um local esquisito, distante, e quando lhe perguntavam – Onde fica isto? - ele apenas encolhia os ombros, silenciava-se e acreditava que ela um dia regressaria do vazio sonho sem almofadas, subia-se uma escada íngreme, apertadinha, e quando chegávamos ao sótão, a senhora teia de aranha – Noites de insónia, terceiro andar frente – e de mão dada, descíamos, descíamos, e acabávamos por ultrapassarmos as paredes velhas em gesso e quando acordávamos, estávamos num jardim público, e junto a nós o nicho de Nossa Senhora de Fátima, perguntavas-me – Amor, o que fazemos aqui – e como sempre, não respondi, ou não sabia responder)

E uma mão inclinada, provavelmente com uma inclinação de dezassete graus, e pacientemente, poisava no meu rosto,

(extraias-me a raiz quadrada, calculavas-me a integral tripla do meu coração, depois, traçavas aleatoriamente rectas sobre o meu corpo, até que

“O cubo corporal suspenso numa árvore de papel, a pele mistura-se dentro da sombra desenhada com as lâminas de barbear, escrevo folhetos, folhetins, panfletos, em promoção conseguia-se uns descontos confortáveis, três panfletos por cinco contos, barato, fazíamos sempre uma excelente compra, e se algo corresse mal, claro, sempre por culpa dos ciganos – A quem compraste, pá? - claro, a um cigano que andava a passear pela rua – Qual rua? - uma, qualquer, uma rua sem asas, em voos de liberdade condicionada”

até que nos deitávamos sobre um cobertor almofadado, um tanto preguiçoso, e em conjunto, resolvíamos todos os problemas de matrizes, e em conjunto calculávamos a massa dos corpos em repouso, pegávamos no peso quase sempre nos esquecíamos da força gravítica, e eu poisava em silêncio a minha mão sobre os teus castanhos olhos e – Pede um desejo! - ao que tu respondias – Quero-te a ti! - e claro, nem a raiz quadrada, nem as matrizes, e claro, nem as integrais triplas, faziam sentido nas nossas vidas)

E uma mão inclinada, provavelmente com uma inclinação de dezassete graus, e pacientemente, poisava no meu rosto, era a tua dúctil mão com sabor a cereja embrulhada em papal de chocolate, havia palavras no interior do papel

(eu amar-te-ei sempre)

E com o tempo,

Há muito tempo,

O papel derreteu com as temperaturas elevadas da cidade, e as palavras, elas, diluíram-se com a chuva miúda do último Outono ausentado do cubo empanturrado de corpos, nus, brancos, liquefeitos... como a terra molhada depois das chuvas, e o capim balançava dentro de um pedaço de saudade...

 

(ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:26

24
Ago 12

Absorto o meu corpo

às árvores sem dentes

na boca um poema morto

nas mãos o perfume das madrugadas ausentes

 

(escrevem-me sem palavras

textos nas pálpebras da noite)

 

e oiço a voz do medo

dentro do guarda-fato

o meu corpo

absorto

amanhã cedo

cansado e farto

 

Absorto o meu corpo

às árvores sem dentes

morto

 

absorto

os pássaros disfarçados de barcos amargurados

suspensos nas nuvens do Tejo

morto

o meu cadáver em linha recta

duas linhas rectas paralelas

passeando pelas ruas de Lisboa

o infinito

os bares onde gajas boas

dormiam e fingiam orgasmos sobre as mesas de cabeceira

entre Cais de Sodré

e a Ajuda

 

ajuda coisa nenhuma

apenas um empecilho na algibeira

e meia torrada ao pequeno almoço

sem jeito

eu

morto

absorto

no declínio do amanhecer...

 

(poema não revisto)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:14

21
Ago 12

Os homens que correm entre os carris da dor

na esperança que o comboio da solidão

que curiosamente anda sempre atrasado

na esperança

que os silêncios dos lábios amargos da noite

poisem docemente sobre as abelhas do tesão

quando do púbis do amor

um dos homens se transforma em telemóvel

descartável

e recarregável

e do húmus

o corpo do homem roça-se numa esquina de esperma

 

os homens

perdidos nas garrafas de vodka

que os marinheiros dos sonhos

deixaram no cais da saudade

 

e os barcos de papel arderam quando acordou a lua

e as mulheres sem coração

espreitaram à janela

 

juras finíssimas de amor

nas mortalhas da Calçada da Ajuda

e os pombos comiam-me as palavras do caderno preto

e os pombos

entre os carris e os homens e a dor e o comboio da solidão

 

todos.

 

Todos engasgados no corpo do homem travestido de telemóvel

com os braços de madeira

e as pernas construídas com as gotinhas de esperma

que sobejaram da esquina da morte...

 

(É isto a vida?)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:20

28
Mar 12

Hoje, hoje o dia igual ao de ontem, hoje, hoje o dia igual ao de amanhã, e a maldita roulotte sempre inclinada no reumatismo e nas cãibras incolores, tropeça nas ondas do mar a escrivaninha suspensa no cartão de cetim, e escrevo-te acreditando que me ouves, abro a janela e grito para os barcos fantasmas que navegam no teu oceano,

- Deixei de ouvir-te Quando as gaivotas se abraçaram ao infinito da tarde, Esperava-te, Escrevia nas pálpebras o teu nome e Desenhava na minha mão o teu rosto, Deixei de ouvir-te

Olho pacientemente a escrivaninha da noite onde poisa a tua foto juntamente com o “Livro de Crónicas” de António Lobo Antunes,

- Quando as acácias partiram em direção ao mar, abro a janela e grito o teu nome incessantemente e em vão,

Deixei de ouvir-te, deixei de ler, oiço a tua voz impressa em papel mata-borrão, escrevo muito e até as árvores deixaram de ouvir-me, Deixei de ouvir-te quando as gaivotas se abraçaram ao infinito da tarde, esperava-te, escrevia nas pálpebras o teu nome e desenhava na minha mão o teu rosto

- São tristes todos os dias,

Olho-te e o “Livro de Crónicas” olha-me como se eu fosse um esqueleto com óculos escuros descendo a calçada da Ajuda e

- São tristes todos os dias, e todas as noites crescem como ervas daninhas à procura dos petroleiros embriagados, o Tejo cambaleia na sombra da tua voz,

E desço até ao fundo do poço onde um dos pedacinhos de papel mata-borrão brinca com uma abelha, tento resgatar a tua voz, não consigo, deixei

- Deixarei de ouvir-te nos algerozes quando encontrar os restantes pedacinhos de papel mata-borrão,

Hoje, hoje o dia igual ao de ontem, hoje, hoje o dia igual ao de amanhã, e a maldita roulotte sempre inclinada no reumatismo e nas cãibras incolores, ela procura a escrivaninha entre os papéis

- Deixei de ouvir-te,

Deixei de ter retrato, deixei de ler “O Livro de Crónicas”, deixei de acreditar que um dia vou encontrar todos os pedacinhos de papel mata-borrão, descem todas as estrelas até chegarem ao estômago da noite,

- Deixei de ver-te do sótão amordaçado,

São tristes todos os dias, e todas as noites crescem como ervas daninhas à procura dos petroleiros embriagados, metade de mim está sentada junto ao Padrão dos Descobrimentos a fumar haxixe e a beber cerveja, a outra metade algures num quintal debaixo das mangueiras onde o triciclo curvilíneo corre nas arcadas da espuma do mar, e todas as outras metades que sobejaram em todos os rios e em todas as cidades,

- “ O Livro de Crónicas” suspenso na minha mão, e sobre a escrivaninha o teu retrato de cabelos ao vento,

São tristes todos os dias, são tristes todos os barcos, são tristes os livros e as palavras…, e as noites crescem como ervas daninhas,

- Deixei de ouvir-te Quando as gaivotas se abraçaram

E o mar muito pequenino entrou na minha algibeira e comeu-me como se eu fosse um esqueleto com óculos escuros descendo a calçada da Ajuda.

 

(texto de ficção)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:13

05
Dez 11

Procuro a cidade

Na algibeira da manhã

E na caixa de sapatos onde habito

Encosto-me às paredes de vidro

Que circundam o espaço exíguo dos meus sonhos

A cidade perde-se no silêncio do rio

 

Gaivotas amestradas

Brincam junto às bichas que buscam engate nas sombras de Belém

E sinto entre os dedos da minha mão invisível

Os cigarros em desejo

Quando olham do outro lado

A outra cidade enfeitada de luzes e lágrimas

 

Sento-me contra os candeeiros pregados à gaguez da tarde

Oiço na calçada os muros amarelos que ardem e desaparecem

E tal como os meus cigarros em desejo

Junto às bichas que buscam engate nas sombras de Belém

Ardem os muros ardem as árvores…

Tudo arde na algibeira da manhã e na caixa de sapatos onde habito

publicado por Francisco Luís Fontinha às 13:15

29
Ago 11

Porque caiem as maçãs no meu quintal, uma e outra e mais outra, de manhã, à tarde e à noite, toda a noite, e oiço-as tombar no cimento, e oiço-lhes os ais e os uis, e parecem pombas quando abatidas por um caçador furtivo,

 

Newtom dir-me-ia que As maçãs caiem devido à gravidade, o doutor psiquiatra que As maçãs caiem devido à solidão e saudade, e eu, e eu que nem uma coisa nem outra, As maçãs caiem no meu quintal, primeiro porque existem macieiras, e segundo porque se suicidam, despregam-se da árvore, e pum, e a tarde evapora-se,

 

 Desistem de viver,

 

O doutor psiquiatra olha-me e de receituário na mão diz-me Com estes comprimidos e uns passeios junto ao mar, elas, elas ficam como novas e deixam de cair, Não percebo, não percebo, e pergunto-me, e pergunto-lhe Qual a semelhança entre o mar e caírem as maçãs no meu quintal,

 

Nenhuma, responde-me o doutor psiquiatra, e continua Você ainda não percebeu que sou maluco?, respondo-lhe que não, Não, não sabia, e eu, e eu que pensava ser o único maluco nesta terra,

 

Poesia, imaginação ou… tubos de LEDs?, e as maçãs caiem, os figos caiem, e as bananeiras, as bananeiras estatelam-se sobre a terra agreste do quintal, tudo em ruínas, ruinas ruinas ruinas ruinas, a minha vida retalhada em pedaços de amêndoa, e quem me está a ler, se alguém tem paciência para ler estas porcarias, pensa e grita e escreve nas paredes Este tipo ficou maluco!, fiquei e fiquei e fiquei, mas ainda me mantenho em pé, ao contrário das maçãs que constantemente caiem, constantemente caiem da noite e não me deixam dormir, pensar, viver, caminhar,

 

E porquê poesia, imaginação ou… tubos de LEDs?, por nada, porque sou maluco,

 

E porque sou maluco imagino maçãs a caírem no meu quintal, e porque sou maluco imagino que vivi perto do mar, e a verdade, não sei o que é o mar e nunca o vi, tão pouco sei ler ou escrever, e nunca vi barcos, e nunca vi aviões, e nunca vi pássaros, e a verdade, a verdade que fiquei maluco, e fiquei e fiquei e fiquei, e nunca estive em Luanda, a verdade, que no céu não existem estrelas, e a luz, a luz não existe,

 

A verdade, que caiem maçãs no meu quintal, a verdade, sim, fiquei maluco maluco e maluco, a verdade, que me olho ao espelho, e eu, e eu não lá, no espelho um corpo travestido, um homem velho e vestido de mulher, os seios extinguiram-se numa tarde junto ao Tejo, e o púbis, Qual púbis, pá?, o púbis deve andar pelas ruas desertas da minha infância, que é verdade, nunca estive em Luanda, Que ideia, Luanda!, Luanda nem existe segreda-me o doutor psiquiatra, e eu, e eu acredito, e repito, e grito…

 

Luanda nunca existiu, e as maçãs não caiem sobre o cimento doente, não e não e não, e passei-me, e farto-me deste corpo travestido sentado a olhar cacilheiros e ondas e gaivotas e putas e paneleiros e o rio e os cigarros que se engasgam na ponte 25 de abril, um carro chia, adormece, e da noite caiem maçãs no meu quintal,

 

Caiem e caiem e caiem, e Luanda nunca existiu, e que nunca estive em Lisboa, e que não sei o que é o Tejo, nunca o vi, é tudo mentira, Belém?, que Belém, pá?, nem Belém nem Calçada da Ajuda, quanto mais o Tejo…

 

Quanto mais cacilheiros.

 

(texto de ficção)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:03

23
Ago 11

Vem a mim o dia de ontem, e faz-se acompanhar com as côdeas da noite, o néon que galga os passeios e os mendigos que se escondem na garganta da lua, vem a mim o dia de ontem, e desembrulho-o, e quando o poiso sobre a minha mão trémula percebo que o dia de hoje não é mais do que uma fotocópia do dia de ontem,

 

- Então a tua vida não passa de uma sebenta!, diz-me um dos mendigos que vinha agarrado à finíssima folha de papel,

 

E repondo que é verdade É verdade, amigo, a minha vida é uma sebenta, a minha vida enrolada em teias de aranha, e arrumadinha na prateleira junto ao teto, três caixas de cartão proibidas aos olhares humanos, proibidas aos meus olhos, porque tenho medo de lá entrar, e três caixas de cartão que mais cedo ou mais tarde vão adormecer eternamente na fogueira, debaixo do pessegueiro,

 

- Tens ratos no quintal Ratos no quintal?, e o mendigo a jurar-me a pés juntos que viu um casal e dois filhos a correrem para as margens do Tejo, e uma sombra perdia-se de olhares nos engasgos dos cacilheiros, estava sentado junto à margem e quando um cigarro se extinguia nos odores do Tejo outro já em fila de espera junto à parada para se  agarrar aos meus lábios, o capitão aos berros Isto é que são horas de chegar ao quartel?, eu olhava as minhas botas e mentalmente respondia-lhe Se te fosses foder!, e calava-me e ouvia, e o vento puxava-me e o meu corpo balançava, e pergunto ao capitão Meu capitão, algo se passa com a parada, treme tanto?, e as nuvens escondiam-se junto à ponte, e os carros soluçavam,

 

Claro que algo se passa com a parada, deve ser gripe, mas amanhã de manhã está fina que nem aço, uma folha de vinte e cinco linhas e vais ver como são elas, dois ou três fins de semana de castigo,

 

- E durante a noite descia do teto um homem que me roubava os sonhos, Um ladrão de sonhos? O mendigo a enganar a tarde com um pedacinho de pão, e durante a noite descia do teto um homem de sobretudo e cigarro nos lábios, e agarrado à minha cabeça levava-me todos os meus sonhos e em quinze meses deixei de sonhar, e apenas pedacinhos de papel sobraram e adormecem nas três caixas de cartão,

 

Vem a mim o dia de ontem, e faz-se acompanhar com as côdeas da noite, o néon que galga os passeios e os mendigos que se escondem na garganta da lua, e a empregada da esplanada, e ao mesmo tempo que me servia, em melodias de pássaro Sempre tão triste e sem sorriso!, e eu respondia-lhe Aqueles gajos roubaram-me os sonhos e o sorriso…

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:48

08
Ago 11

Descem na manhã as coxas da noite ensaboadas no sémen da maré, e nos outeiros são os silêncios de púbis que pausadamente se enrolam nas mãos de um cansaço, no corpo um finíssimo fio de luz sorri e dos braços as docas abarrotadas de mendigos, os cabelos que se escondem no avental da empregada de mão dada com o aço-inoxidável do balcão, e copos de cerveja tombam como rebuçados de chocolate na mão de uma menina que procura os dentes dentro de um búzio,

 

- Noite de oito de Agosto de mil novecentos e oitenta e oito, acabo de perder-me na cidade, o rio furioso com a minha despedida, e sinto-lhe os dentes nos meus braços, cambaleio em solavancos de calçada, estou bêbado e à minha volta tudo parece ter morrido, corro pelas ruas e não vejo, e não oiço, ninguém, estou completamente só na avenida vinte e quatro de Julho, eu e a pesadíssima mochila verde, é segunda-feira, e penso Até à meia-noite tem de me passar a bebedeira!, a mochila rosnava nos meus ouvidos que o comboio esperava por nós, mas pelo sim pelo não, caminhei em sacrifícios até Santa Apolónia, e começo a sentir os enjoos do uísque da tarde,

 

A empregada esconde as mãos no avental e sinto-lhe nos olhos o orvalho da noite, a insónia, possivelmente o namorado longe, ou as gaivotas suspensas nas janelas viradas para a escuridão, e barcos de desejo entram-lhe pelo estabelecimento, lotação lotada e amontoam-se à porta de entrada, as algas pedem amendoins, e os barcos ensanguentados de penas de pássaro em fila indiana para a casa de banho, a chuva miudinha de cerveja, a mistura milagrosa de vodka e noites de solidão a escutar o João Chaves e o Oceano Pacifico, e um livro sobre a mesa, as botas penduradas nos cabides do armário, e de vez em quando uma mortalha arreganhava os dentes e entrava-me pela garganta, e estômago, e o fumo dilacerante dos objetos desfocados, e à minha volta tudo em movimento, as espingardas voavam junto ao teto, os capacetes abraçados e a dançarem, e nos cinturões os pares de calças só de uma perna, talvez uma granada, talvez uma mina trazida de África,

 

- Tarde de oito de Agosto de mil novecentos e oitenta e oito, o capitão Cruz em ameaças Só te dou a caderneta militar se pagares uma garrafa de uísque!, e eu farto de andar quinze meses a olhar o Tejo e a Calçada da Ajuda, e nem penso duas vezes, Vamos lá à garrafinha, meu capitão, e quando se convida uma pessoa aparecem logo cinco garrafões que bebiam como esponjas, e percebi logo, Isto nem três garrafas vão chegar, e não chegaram e todos bêbados, e não me deixou pagar nada, entrega-me a caderneta militar, e com um abraço sonâmbulo despeço-me dele e dos outros, acompanham-me até à porta de armas e desço a calçada, olho para trás, e penso Estou livre desta merda, e quando acabo de dizer “merda” um paralelo da calçada levanta-se, tropeço e caio, a primeira queda de muitas,

 

A menina encontra os dentes dentro do búzio, a noite começa a crescer e no teto de Santa Apolónia vejo rissóis de camarão e latas de cerveja, pego em mais latas do que em rissóis, entro na carruagem e adormeço, e quando acordei a ponte de dona Maria em soluços, procuro as latas de cerveja e os rissóis, alguém bebeu as cervejas e comeu os rissóis, porque procurei, procurei, e apenas um avental sobre a minha mochila…

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:53

05
Ago 11

Adormeço os meus lábios na doce almofada da noite,

 

A minguada sombra do meu corpo projetada na parede, Estou tão magro, mãe!, pergunta-me porquê, e que nem eu sei, segredo-lhe com um beijo na face amarrotada dos anos e das canseiras da vida,

 

Provavelmente das geadas de inverno, provavelmente dos socalcos do Douro, provavelmente da idade, provavelmente porque envelheço duas vezes ao ano, adormeço várias vezes por noite, e caminho diversas vezes durante o dia em círculos à volta da fogueira, a cinza do cigarro dilata-se na minha mão que não serve para nada, nem para acariciar o rosto de uma flor, nem para poisar sobre o vento,

 

E ficas tão bonito quando desfazes a barba!, e digo-lhe que não sei, Não sei mãe, nunca me olho no espelho do quarto, tenho medo, e possivelmente deixe de desfazer a barba e cortar o cabelo,

 

Ser livre como as árvores de ramos ao vento, voar como os pássaros e poisar onde me apetecer, ser livre enquanto o meu rosto adormece na doce almofada da noite, e as minhas mãos chapinham nas ondas do mar, Fiquei desiludido, mãe!, a voz dela cansada Porquê, meu filho?, e as minhas palavras colam-se no silêncio da ténue luz do candeeiro, Li um poema de AL Berto em que ele dizia  “o mar entra pela janela”, e noite após noite, Mãe!, nem o mar nem notícia boa,

 

Porquê, Mãe?,

 

Adormeço os meus lábios na doce almofada da noite, em vez de o mar entrar pela janela entram-me as ruas de Lisboa, o Tejo e os cacilheiros, Belém e o comboio para Cascais, os jardins e a ponte, os carros estacionados na peugada do engate e mangalas que faltam pela janela e se suicidam à porta de armas, e o sargento em pedacinhos de enjoo apanha os desperdícios que vacilam pela calçada, ao fundo o rio, E adormeço, mãe!, e quando acordo, Quando acordo, mãe, não existe Tejo, não existem cacilheiros, não existe Lisboa, O que existe, mãe?, apenas o cheiro dos bares de Cais de Sodré às cinco da manhã, e a pé até Belém acredito que amanhã está sol, E sabes, mãe?, vou à janela e não sol,

 

Nuvens penduradas no céu e vontade de fugir.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 16:56

12
Jul 11

Feldspato estrôncio,

Desempregado, e residente na rua cúbica de faces centradas, número trinta e oito, Lisboa, funde-se a setecentos e setenta e sete graus centígrados e ebuliu para a atmosfera a mil trezentos e oitenta e dois graus centígrados, perdido na obesidade da manhã, na algibeira os oitenta e sete vírgula sessenta e dois de peso atómico, Feldspato estrôncio, doutorado em casas de pasto e pós-doutoramento na noite prostituta de Cais de Sodré, e entre uma sandes e um cacilheiro, E para que fumas essas merdas?, a mãe de terço na mão a pedir proteção, E para que fumo estas merdas?, para emagrecer e esconder-me na sombra das garrafas de vodka, respondia-lhe ele, e eu subscrevo as palavras do senhor que falou antes de mim, para emagrecer e deixar de ser visto, levantar entre as botas semeadas na parada e poisar no tejo, não, não me enganei, o douro longe, muito longe, e poisar no tejo à espera do petroleiro cinzento e de asas cor-de-rosa, o meu nome gravado na quilha em letras bordadas com cerejas, e eu penso, e ele escreve, estamos os dois quilhados meu amigo, estrôncio para as amigas da noite, e para a restante população, O senhor professor doutor feldspato estrôncio está?, perguntava a menina das pizas, um momento que eu vou ver, sem hesitar a empregada de limpeza, e peço muita desculpa, mas o senhor professor doutor sentado na sanita a enviar telegramas para o governo, Como?, perguntava a mãe, é isso que acabou de ouvir, vou para angola, silabava o professor doutor, menos, menos, só estrôncio, silabava estrôncio para o esqueleto encardido da mãe, Que faço agora com a piza?, do primeiro andar para a rua a empregada de limpeza, Come-a!, o professor doutor feldspato estrôncio esquecido na sanita, Estás a falar a sério, meu filho, isso de ires para angola!, a minha mãe em lágrimas, A mãe não foi para angola?, e fui, O pai não foi para angola?, e foi, E eu, eu não fui construído em angola, e foste, lança-a pela janela, Não percebi Professor?, e ele tinha de explicar à empregada de limpeza como se lançava uma piza pela janela, olha minha filha, olha bem, sim professor estou olhar, abres silenciosamente a janela, E porquê?, corres o cortinado, Todo?, abres a caixa e retiras a piza com jeitinho, percebes, mais ou menos, Mais ou menos?, desculpe professor, não sei se é preciso luvas, Luvas para quê?, pegas na piza e em passos lentos aproximas-te da janela, E depois professor?, sei lá depois, olha para mim, sim professor, imagina a miúda que espetava pregos nas oliveiras a atirar pedras às cabras, e assim farei professor, assim farei, resmungava a empregada de limpeza, E para que fumavas aquelas merdas?, para emagrecer e esconder-me dentro de uma garrafa de vodka, entupir a sanita turca com os pedacinhos de vómito do jantar, muita pouca coisa, dois textos e três poemas, e se for capaz, diz estrôncio, e se for capaz de aterrar no beliche do rés-do-chão já me dou por feliz, isto é, sim estrôncio diz, isto é se não derrapar no corredor fino e comprido da calçada da ajuda, claro que não respondo-lhe eu, meia dúzia de metros e quatro ou cinco ratazanas, Só?, sim estrôncio, só.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:25

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