foto: A&M ART and Photos
Deixamos de ouvir os murmúrios das garças, chegada a noite, sempre uma janela que se encerrava, uma porta com os gonzos empenados, talvez sofrendo de bicos de papagaio, espondilose lombar ou artrose, ou dobradiças enferrujadas, ou
de coração frágil
Ou porque ontem tínhamos onde nos sentar e hoje, hoje não cadeiras, hoje não bancos, hoje... que raio se passou hoje, que coisa, que nem um banco livre para poisarmos as pernas, descansarmos o rabiosque, nada, parece que nos abandonaram, como a elas, que as deixamos de ouvir, ou morreram, ou
e pior do que frágil, às vezes bate desmesuradamente, velozmente como um cavalo acabado de nascer, um inútil, ou
Ou uma triste mão como lágrimas de tempestade, que sem segundas intenções, pegava em nós, e acariciava-nos os nossos cabelos de enxofre, e sentíamos essas mesmas mãos, lisas, duchista, a percorrerem os nossos corpos acorrentados à baliza que ficava ao fundo do recreio, queriam que eu jogasse futebol, eu jogava mas inventava mentalmente personagens dentro de mim, e sabia que no futuro tu, olhavas-me no passado, como hoje, eu
olho-te no futuro,
Morreste já, como as estrelas que quando as vimos nascer, provavelmente, digo, quase de certeza, já morreram também como tu, perguntas-me
porquê?
Imagina a tua imagem longínqua de mim, sobre uma montanha de areia, imagina que essa imagem é reflectida e vem até mim, demorando milhões de anos luz, poderás concluir que quando a tua imagem me abraçar, tu, já não existirás, Certo?
olho-te no futuro, tens quatro filhos, já és avó, mal podes com as pernas, demoras uma infinidade a subir as escadas para o sótão da vaidade, quando atinges o patamar, abres a porta quase encharcada de bicho da madeira, ela range, e começa aos poucos a decompor-se como um corpo hirto mas morto, defunto, e de uma janela onde costumávamos ouvir as garças, é hoje uma parede de betão, sem acesso ao telhado, não temos divã, e os livros que tínhamos deixado ficar nas estantes, também eles, morreram, em pedaços, são agora poeiras voláteis em voos nocturnos,
Certo! E claro que não percebeste nada do que eu te disse, como sempre, imaginas-me louco, criança ainda, porque devido ao desfasamento entre o tempo e o espaço, eu vivo na infância, e tu, infelizmente, já ultrapassaste a velhice,
és defunta, vives num cemitério perto da Ajuda, e todas as noites, sempre que a neblina desce até à cidade, contas as gaivotas que entram e saem do cais de embarque, um dia, vou crescer, vou ser adulto, talvez, talvez um marinheiro salteando de cais em cais, os alicerces das tabernas com mesas e toalhas em plástico, serviam-nos pedaços de churrasco e bata frita, depois, sofríamos a azia, o cansaço, o delírio das distâncias, desde a montanha longínqua até mim,
Certo, sofro porque ainda sou pequeno, brinco num quintal imaginário com um triciclo imaginário, no quintal percebo que existem muitas árvores, são reais, porque lhes toco, e elas, falam comigo, segredam-me o futuro e choram o passado, há um portão em ferro onde Às vezes, quando me sinto cansado, prendo o cordel que me dá acesso a um papagaio de papel esquecido no céu quase nocturno, são cinco da tarde, o dia escoa-se-me por entre os meus finíssimos dedos, que não sei se algum dia crescerão, se algum dia, eu crescerei, se algum dia tu acordarás do teu sono eterno, tão pouco
és defunta, vives num cemitério perto da Ajuda, e ouvíamos os murmúrios das garças, chegada a noite, sempre uma janela que se encerrava, uma porta com os gonzos empenados, talvez sofrendo de bicos de papagaio, espondilose lombar ou artrose, ou dobradiças enferrujadas, ou
de coração frágil
E a tua imagem, anos luz depois, chegava até mim, e docemente, abraçava-me.
(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha