Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

30
Mar 14

foto de: A&M ART and Photos

 

Sacias-te na minha sede mergulhada em perfumados cachimbos de prata,

encontras em mim a doce corrente do aço clandestino da saudade,

sei que existo porque escrevo-te palavras, vãs palavras que o tempo come, e alimentam as tempestades da dor,

sacias-te em mim como se eu fosse um marinheiro escondido na escuridão da cidade,

procurando engate, procurando o prazer sem o prazer... no inanimado mundo da morte,

procurando mãos silenciosas para argamassarem o meu corpo aos cais do desgosto,

e sinto-me uma ténue folha de papel esquecida no teu ventre,

sacias-te nos meus olhos, e cerro-os para me ausentar de ti,

palavra, palavra do engano que sente o sofrimento,

e... dizes-me que todas elas são inconstantes equações trigonométricas,

cansadas,

tão cansadas como as tuas mãos poisadas no meu rosto de lata...

 

 

Francisco Luís Fontinha – Alijó

Domingo, 30 de Março de 2014

publicado por Francisco Luís Fontinha às 14:54

20
Mai 13

foto: A&M ART and Photos

 

Deixamos de ouvir os murmúrios das garças, chegada a noite, sempre uma janela que se encerrava, uma porta com os gonzos empenados, talvez sofrendo de bicos de papagaio, espondilose lombar ou artrose, ou dobradiças enferrujadas, ou

de coração frágil

Ou porque ontem tínhamos onde nos sentar e hoje, hoje não cadeiras, hoje não bancos, hoje... que raio se passou hoje, que coisa, que nem um banco livre para poisarmos as pernas, descansarmos o rabiosque, nada, parece que nos abandonaram, como a elas, que as deixamos de ouvir, ou morreram, ou

e pior do que frágil, às vezes bate desmesuradamente, velozmente como um cavalo acabado de nascer, um inútil, ou

Ou uma triste mão como lágrimas de tempestade, que sem segundas intenções, pegava em nós, e acariciava-nos os nossos cabelos de enxofre, e sentíamos essas mesmas mãos, lisas, duchista, a percorrerem os nossos corpos acorrentados à baliza que ficava ao fundo do recreio, queriam que eu jogasse futebol, eu jogava mas inventava mentalmente personagens dentro de mim, e sabia que no futuro tu, olhavas-me no passado, como hoje, eu

olho-te no futuro,

Morreste já, como as estrelas que quando as vimos nascer, provavelmente, digo, quase de certeza, já morreram também como tu, perguntas-me

porquê?

Imagina a tua imagem longínqua de mim, sobre uma montanha de areia, imagina que essa imagem é reflectida e vem até mim, demorando milhões de anos luz, poderás concluir que quando a tua imagem me abraçar, tu, já não existirás, Certo?

olho-te no futuro, tens quatro filhos, já és avó, mal podes com as pernas, demoras uma infinidade a subir as escadas para o sótão da vaidade, quando atinges o patamar, abres a porta quase encharcada de bicho da madeira, ela range, e começa aos poucos a decompor-se como um corpo hirto mas morto, defunto, e de uma janela onde costumávamos ouvir as garças, é hoje uma parede de betão, sem acesso ao telhado, não temos divã, e os livros que tínhamos deixado ficar nas estantes, também eles, morreram, em pedaços, são agora poeiras voláteis em voos nocturnos,

Certo! E claro que não percebeste nada do que eu te disse, como sempre, imaginas-me louco, criança ainda, porque devido ao desfasamento entre o tempo e o espaço, eu vivo na infância, e tu, infelizmente, já ultrapassaste a velhice,

és defunta, vives num cemitério perto da Ajuda, e todas as noites, sempre que a neblina desce até à cidade, contas as gaivotas que entram e saem do cais de embarque, um dia, vou crescer, vou ser adulto, talvez, talvez um marinheiro salteando de cais em cais, os alicerces das tabernas com mesas e toalhas em plástico, serviam-nos pedaços de churrasco e bata frita, depois, sofríamos a azia, o cansaço, o delírio das distâncias, desde a montanha longínqua até mim,

Certo, sofro porque ainda sou pequeno, brinco num quintal imaginário com um triciclo imaginário, no quintal percebo que existem muitas árvores, são reais, porque lhes toco, e elas, falam comigo, segredam-me o futuro e choram o passado, há um portão em ferro onde Às vezes, quando me sinto cansado, prendo o cordel que me dá acesso a um papagaio de papel esquecido no céu quase nocturno, são cinco da tarde, o dia escoa-se-me por entre os meus finíssimos dedos, que não sei se algum dia crescerão, se algum dia, eu crescerei, se algum dia tu acordarás do teu sono eterno, tão pouco

és defunta, vives num cemitério perto da Ajuda, e ouvíamos os murmúrios das garças, chegada a noite, sempre uma janela que se encerrava, uma porta com os gonzos empenados, talvez sofrendo de bicos de papagaio, espondilose lombar ou artrose, ou dobradiças enferrujadas, ou

de coração frágil

E a tua imagem, anos luz depois, chegava até mim, e docemente, abraçava-me.

 

(ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:12

02
Jan 13

Talvez, um dia, quem sabe, junto ao cais da rocha conde de Óbidos, zarpe, visto-me de marinheiro, pego num pequeno barco, de preferência, em madeira prensada, por causa do peso, e zarpo, sem rumo, destino, endereço físico ou electrónico, deixo ficar tudo

Não acredito que o faças, e enquanto a oiço penso nas ruas onde brinquei, me sentei, caí e chorei, penso, recordo, e enquanto a oiço vejo-me sentado em cima de uma grade de madeira onde alguém tinha trazido maçãs, ou pêssegos, talvez laranjas, foi há tempo suficiente para não me recordar, e sei que junto ao portão eu o esperava, abraçava-o e ele dava-me um beijo, pegava na minha mão trémula, e desaparecíamos entre as sombras das mangueiras,

Deixo ficar tudo, e mergulho no vácuo

Sem rumo eu, hoje, dele, quando o mar, talvez laranjas, o mar pegava nele e levava-o a passear pelas ruas invisíveis da cidade iluminada por candeeiros a petróleo e flores com olhos verdes, dele, o mar vestia-o de marinheiro, e zarpava, corria e descia a calçada, sempre apressadamente abraçado à loucura, esquecia-se sobre a mesa da cozinha do fuso horário, parava sobre o equador, toda a noite, o baile de gala, dançavam, dele, nunca lhe ouvi uma palavra de amor, nunca, nunca lhe ouvi um sorriso nos lábios, nunca, sem rumo, eu, hoje, quando o mar, oiço-lhe os lamentos solitários das noites mórbidas que um desenhador constrói com um esquadro e uma régua, os lamentos

Que puta de vida a minha,

Claro que podia ser pior, dizia-lhe eu, e um dia deixo ficar tudo, e mergulho no vácuo, e um dia deixo ficar tudo e mergulho no plasma das tuas veias e vou em direcção ao arco da lua, cerras os olhos, cerras os olhos e oiço-te

Que puta de vida a minha,

E digo-te, e digo-o e escrevo-o para que nunca o esqueças

Que podia ser pior?

E escrevo-o, e digo-o para que um dia nunca o esqueças, nunca, nunca acreditei que o fizesses, e enquanto te ouvia pensava nas ruas onde brincávamos, nos sentávamos, caíamos e chorávamos, pensava, recordo, e enquanto te ouvia via-me sentado em cima de uma grade de madeira onde alguém tinha trazido maçãs, ou pêssegos, talvez laranjas, foi há tempo suficiente para não me recordar, e sei que junto ao portão ele me esperava, abraçava-me e dava-me um beijo, pegava na minha mão trémula, e desaparecíamos entre as sombras das mangueiras, hoje não

E digo-te, e digo-o e escrevo-o para que nunca o esqueças

Que podia ser pior?

Muito pior.

 

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:49

24
Dez 12

Achas-te superior

indigente

com falta de amor

como muita gente,

 

achas-te superior

rainha das coisas boas

montanha de luz

achas-te uma flor

uma simples flor

com pernas de cansaço

e braços

aos abraços

oiço o balançar da porta de entrada

truz truz truz

ninguém será certamente para me dar nada

nem uma simples corda de aço,

 

um prato com sopa de legumes encarnados

vinho do porto velho como os pássaros com asas de mar

(achas-te superior

indigente

com falta de amor

como muita gente)

e às vezes

multiplicam-se as manhãs de inverno

cresce o inferno

maré de marinheiro

quando eu sentado no barbeiro

penso solitariamente nas nuvens de barbear,

 

sinto-te em espuma no meu rosto envelhecido

e das saudades

as pequenas saudades

correr amar correr livremente

e voar

e amar

voar até cair nos teus braços

abraços

uma corda de aço

do tão construído cansaço

a espuma de ti mergulhada no meu simples desenho da alvorada

e tão triste e tão só tudo aquilo que foi esquecido,

 

achas-te superior

indigente

com falta de amor

como muita gente,

 

mas continuarás a ser uma resma de palavras

sem nexo

moribundas quando a mergulhada canção de amor

não é uma flor

é uma canção

que sofre

que dói

e mói

as pedras finas da calçada dos amores proibidos

e dói

mói

a doçura tristeza do desejo.

 

(não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:47

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