Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

24
Mai 13

foto: A&M ART and Photos

 

Saudades são gotas de água

que descem da imensidão da pele ensonada como bocas em despedida

saudades são pergaminhos enrolados nas tuas mãos de andorinha

quando acorda a Primavera

saudades das palavras pronunciadas como migalhas de sílabas

nas pálpebras das vogais adormecidas,

 

Saudades como as tenho

pensando acreditar nas manhãs de sábado

aquelas que ainda não acordaram

que nem sequer sabem se vão acordar

saudades de ti quando te sentavas num banco de jardim a passear livros

ou inventando a resolução de integrais numa sebenta envelhecida,

 

Saudades as tuas quando dos teus lábios de madrugada

sonhavam os beijos salivais com perfume a hortelã...

saudades são gotas de água

são rios

e ribeiras

são palavras e imagens a preto-e-branco numa janela sem vidros.

 

(não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:23

21
Fev 13

Ouvia-o nos meus sonhos, desligava-se a noite no interruptor dos sentidos, acendia-se um cigarro que às vezes deixava solitariamente sobre a cómoda, o isqueiro, algumas moedas, poucas, sempre, e ouvia-o dançando na atmosfera helénica dos versos amarfanhados pelos vómitos das plantas cansadas de sofrer, choravam, todos, às vezes ouvia-o

Ouvia-os,

Choviam,

E eu,

E eu, eu ouvia-os dançando como pássaros anti-tempestade, tracção às duas rodas, asas de liga leve, dentes cromados com suspensórios de couro, e eu

Ouvia-o,

Ele chorava, amava-a pacientemente como quem ama uma árvore e tem a perfeita consciência que não lhe pertence, porque as árvores são livres, e ela não lhe pertencia (o coração) porque ninguém é dono de ninguém, pedia emprestado o caderno e a caneta, parvamente apaixonado, e não percebia que os bonecos de borracha são mais saudáveis que os bonecos de palha, porque não têm saudades, não sabem o que é o amor, e

Ouvia-o, ouvia-os,

Não sei,

E os bonecos de borracha dificilmente se constipam, dificilmente se revoltam contra os governos democraticamente eleitos, não sei, mas nos meus sonhos havia um desejo indesejado de voar sobre a terra queimada, aprendeu matemática e começou a escrever, e começou a desenhar, e começou a descambar

Como eles e elas,

Contra as paredes invisíveis que os outros bonecos, os de palha, construíam nas noites de lua cheia, e eu

Ouvia-os,

Dançando abraçados aos meus míseros cigarros com olhos imperfeitos e incolores e iletrados, liberdade para todos, gritava alguém com palavras acesas em tinta vermelha no muro junto à Igreja, eu tinha medo, dos sonhos, das marés com corpos embalsamados de bonecos de palha, sempre, ainda hoje

Os bonecos de palha são escuros, interinos oficiais das histórias de uma cidade desaparecida, eles são os guardiões das portas secretas dos amores proibidos, amem-se livremente

Como se amam os barcos e as flores e as gaivotas e os papagaios de muitas cores,

Mas

Amem-se, não como eu vos amei, mas amem-se como os ouvíamos sobre a cómoda em busca de um silêncio submerso nas palavras ditas em dias de quinta-feira, amem-se

Mas

Ainda hoje,

Ouvia-os,

Ouvíamos (Dançando abraçados aos meus míseros cigarros com olhos imperfeitos e incolores e iletrados, liberdade para todos, gritava alguém com palavras acesas em tinta vermelha no muro junto à Igreja, eu tinha medo, dos sonhos, das marés com corpos embalsamados de bonecos de palha, sempre, ainda hoje) os, ouvíamos os homens que queimavam os bonecos de palha que se recusavam a simplesmente a acenar com a cabeça, ora elevando-a, ora, ora baixando-a

E eu perguntava-lhes

Custava seus palermas palhaços bonecos de palha? Custava-vos alguma coisa dizerem que sim desenhando uma vénia no ar com misturas de vapor de iodo e sal marinho, Custava-vos seus palhaços cabeçudos?

E que sim, que sim, simplesmente

Sim,

E ela perguntava-lhes

(Desisto de perguntar às paredes e às teias de aranha porque dançavam os meus desenhos que deixei nas paredes de uma casa, num bairro, em Luanda),

E ela perguntava-lhes se sabiam que os sonhos

Sabiam que os sonhos são pedaços de papel com códigos indecifráveis como as matrizes complexas e indesejadas pelos saudosos bonecos de palha, porque os de borracha, esses, quase sempre eram imunes às conversas sobre o amor e a paixão e a noite das noites com sabor

A limão,

E cerejas dentadas como as rodas recheadas com mel e aço inoxidável,

Dos beijos, dos vapores camuflados que habitavam as esquinas assombradas das casas sem janelas, e ouvíamos

Dançando, gritando,

As palavras acesas em tinta vermelha no muro junto à Igreja, eu tinha medo, dos sonhos, das marés com corpos embalsamados de bonecos de palha, sempre, ainda hoje,

Os relógios sem vontade de dançarem,

Dançando, gritando,

(Ele chorava, amava-a pacientemente como quem ama uma árvore e tem a perfeita consciência que não lhe pertence, porque as árvores são livres, e ela não lhe pertencia (o coração) porque ninguém é dono de ninguém, pedia emprestado o caderno e a caneta, parvamente apaixonado, e não percebia que os bonecos de borracha são mais saudáveis que os bonecos de palha, porque não têm saudades, não sabem o que é o amor, e)

Também eu, também eu não sei o que é, o que são.

 

(não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:14

21
Dez 12

Obviamente não foi embora, e três dias depois, quase noite, encerrou-se dentro de uma caixa de vidro, puxou o cortinado, acendeu o cigarro, e sem hesitar, entre coices e telas em acrílico que tinha acabado de destruir e deitado fora, finou-se, morreu, e só teve tempo de cruzar os braços em abraços, e

 

sem hesitar,

 

desapareceu entre as sombras abstractas que a morte inventa no tecto das casas com sótão, escadas em madeira, e janelas sobre as outras casas, também elas, em madeira, e luzes fanadas a outras casas, a água desviada silenciosamente da casa do vizinho, e com duas galinhas, e com alguns coelhos, e poucos

 

sem hesitar,

 

galos de crista encarnada, os cornos do peru, as hastes mestras das cabras, as ovelhas em gemidos, e logo temos queijo fresco e legumes, e sandálias de couro com calções de chita, e sem hesitar

 

obviamente não foi embora, eu

 

sem hesitar,

 

desapareci entre as sombras abstractas que a morte inventa, e poucos

 

porcos de crista encarnada, galos com cornos e perus com asas de papel e hélices em fibra de vidro, e poucos

 

sem hesitar,

 

eu

 

sem hesitar,

 

desapareci entre as sombras abstractas que a morte inventa, e poucos ou nenhuns pássaros sobre o meu cadáver acetinado, as unhas de gel que a menina do rés-do-chão desenhou nas minhas mãos por vinte aéreos, poucos

 

eu

 

sem hesitar,

 

queria ser como tu, terça-feira disseste-me que não, e agora dizes-me que sim, que há pássaros no quintal à minha espera, e que depois de se extinguirem todas as lâmpadas das mesas de vodka, tu puxas de um cigarro, acendes o cortinado, e em coices desapareces nas telas em acrílico que brincavam na torre de controle do aeroporto da Chã, a pista longínqua, o último grito da aviação comercial, o pássaro Galileu em poucas palavras faz-se à pista, e há pista senhores excelentíssimos passageiros, há pista, os carrinhos de choque

 

eu

 

sem hesitar,

 

aos saltos e pulos e voos pegajosos e nojentos para não acordar a vizinhança pela manhã quando era domingo, e tu, hoje, terça-feira disseste-me que não, e agora vejo-te aos círculos na cama com lençóis de mar, há pista, poisas os pezinhos sobre a almofada, abres em noite de estrelas as asas dos desejos nocturnos, rolas silenciosamente pela pista, há pista, há pista senhores excelentíssimos senhores, à pista encostas as mamas e adquires estabilidade, da torre dizem-te

 

sem hesitar menina, vento a dez nós, sem hesitar, endireitar o nariz e os lábios, e não esqueça o púbis cansado e aerodinâmico das canções de Natal,

 

vens bem, pensava eu, enquanto te observava a percorrer a cama pela manhã, vens bem, e aterravas nos meus frágeis braços de alumínio,

 

obrigado senhores excelentíssimos passageiros,

 

aos seus destinos,

 

sem hesitar,

 

caminhava pelas ruas, puxava do cortinado e acendia o cigarro, sentava-me sobre os fardos de palha que todas as manhãs acordavam à porta do tio Joaquim, há porta, janelas, há janelas nesta casa travestida de sótão?

 

eu

 

sem hesitar,

 

mentia-te, e dizia-te que a pocilga onde vivíamos era um sótão com escadas de madeira, e janelas sobre as outras casas, também elas, em madeira, e luzes fanadas a outras casas, a água desviada silenciosamente da casa do vizinho, e com duas galinhas, e com alguns coelhos, e poucos

 

sem hesitar,

 

porcos de crista encarnada, galos com cornos e perus com asas de papel e hélices em fibra de vidro, e poucos,

 

que tu acreditavas.

 

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:24

15
Abr 11

Ter alguém que amamos

E está longe

Ansiedade de estar perto

Saudade

Querer tocar

Apetecer adormecer

Ribeira ao abandono

Planalto onde me quero deitar…

Tempo em separação

Distância

Ter alguém que amamos

E não lhe podemos tocar

Nem sequer fazer um carinho

Falar-lhe ao ouvido

Baixinho

Ter alguém que amamos

E está longe

Perdida no infinito

Constelação de Vega

Voando em desalinho…

Pássaro no meu destino

Flamingo…

Saudades

Ter alguém que amamos

Que adormeça ao meu lado

Ouça o que quero dizer

Deambulando no meu pensamento

Ter alguém que amamos

E é difícil suportar as saudades

A ausência

A não presença

Ter alguém que amamos

A quem não poso e queria

Dizer boa noite, bom dia

Ajudar-me a escolher a roupa para vestir

Enfrentar o dia

Fazer amor na madrugada

Ter alguém que amamos

Que nos quer

Que eu quero

Que tenho saudades

Saudades de desejo

Desejar não ter saudades

Ter alguém que amamos

E fisicamente ausente

Que com as minhas mãos

Quero pegar no seu sorriso

Abraçar o seu olhar

Saltar de alegria

E não ter saudades

Ter alguém que amamos

Numa ilha em pleno Oceano

Jangada de pedra

Navegando sem destino

Nos meus olhos de menino

E tenho saudades…

 

 

Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:32

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