Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

22
Ago 11

Oiço-te, oiço-te na água da ribeira,

E ausentas-te em silêncios de noite,

Oiço-te, oiço-te quando entram em mim

Todas as sombras da montanha,

E as estrelas, e a lua, e a água da ribeira,

Oiço-vos nos cansaços dos meus braços,

Oiço-vos dentro do meu peito

Quando comboios de cigarros perfuram

Os meus pulmões de carvão,

E fios de aço

Suspendem-se na minha pele esbranquiçada

Com sabor a lixivia e a limonada,

 

Oiço-te, oiço-te no final do dia,

E das tuas mãos emergem silabas atónitas

E palavras complexas

E ruas sem saída,

Os edifícios crescem

E tocam o céu,

E oiço-te, oiço-te quando conversas com deus,

E ele, ele diz-te que sou um inadaptado,

 

Tu, pedes-lhe desculpa e rezas,

Eu, eu pego num livro do Pacheco e mando-o dar uma voltinha…

Porque estou farto,

Porque me sinto cansado,

 

Que deus me chame inadaptado,

Ex drogado,

E oiço-te, e oiço-te quando te escondes entre os lençóis

E consegues com ele um acordo justo,

 

Ele, ele deixa de me chatear,

E eu, eu finjo que ele existe,

Continuo com o Pacheco na mão…

E espero ouvir-te quando acorda a manhã…

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:15

09
Ago 11

O senhor abade despe as calças e pausadamente pendura-as no cabide metálico do guarda-fato, a irmã Rosário olha-o e em rezas traiçoeiras engasga-se quando da janela vê uma gaivota que bate com o bico e em altos berros O mundo vai acabar!,

 

Depois de efetuado o sorteio calhou ao senhor abade dormir no chão e à irmã Rosário, que devido ao elevado estado de decomposição dos pesadíssimos anos, dormiria na cama enfeitada com canapés e arroz de feijão, o cheiro que da cozinha comunitária chegava ao quarto, o senhor abade benze-se e de joelhos Meu deus, dai-me saúde e forças para continuar a minha caminhada, e a prece felizmente concretizou-se, deus deu forças ao senhor abade para continuar a sua caminhada, e ao contrário dos agoiros da gaivota à janela e que a irmã Rosário foi testemunha, o mundo não acabou,

 

Isto é, o mundo termina para os que morrem,

 

A irmã Rosário para o sacerdote que tinha acabado de colocar as duas mãos sobre o peito a anotar na caligrafia da noite a cadência do bater do coração, desde muito novo apaixonado por deus, e quando duas pessoas se apaixonam pela mesma pessoa começam os trabalhos, os olhares infindáveis à porta de entrada da farmácia, as saídas mensuráveis dos pés trôpegos na despedida da tasca, o subir e descer de uma janela na calada da noite, as perdizes escondidas debaixo das oliveiras quando os caçadores ainda ensonados passam e fingem que nãos as veem,

 

E deus que sempre esteve comigo vai ajudar-me!, as palavras interiores do vigário-mor Benjamim António, nascido e criado na Sertã, afoitado pelas pedradas lançadas às patas da malhada, a pobre e cansada ovelha que sofria de esquizofrenia, e que em cada esquina da rua acreditava ver autocarros com o número 307 e meninas a brincar com triciclos, e nas horas mortas do pasto, alimentava o tempo a espetar pregos nas oliveiras, Safada da ovelha, agachada nos cobertos a irmã Rosário com o rabinho entrelaçado na sombra da parede,

 

E quando o senhor abade termina a contagem do batimento cardíaco já a irmã Rosário ressonava parecendo mais um sino de igreja a vomitar horas do que uma devota de deus, escreve no caderninho Cento e vinte pulsações por minuto, fecha o caderninho em silêncio, poisa junto ao rodapé a esferográfica, e passados alguns minutos com os olhos fechados vê à sua frente a irmã Rosário que se passeava pelo quarto com um terço enrolado pela mão,

 

A irmã sente-se bem?, o abade em reza noturna para a irmã Rosário, e esta responde-lhe que sim Estou bem, irmão!, apenas perdi o sono com o debicar daquela estúpida gaivota no vidro da janela, o abade furioso responde-lhe que a gaivota pode ser um sinal de deus, a irmã Rosário suspende-se entre o candeeiro e a janela e responde-lhe, Irmão, acha que são horas de deus enviar alguém?, o abade retira as mãos do peito, vira-se contra a parede e responde à irmã rosário,

 

Todas as horas são boas para recebermos os sinais de deus!, às vezes nós é que andamos distraídos…

 

(este texto é de ficção e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência e especulação)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:26

02
Jul 11

Mergulho

Dilato-me no vácuo como um sistema de equações

Matrizes alicerçadas aos meus braços

E nas minhas pernas as integrais triplas

 

O peso mingua e o meu corpo em pó

Amarrotado a uma folha de papel

Procuro o meu centro de massa

E um ponto esconde-se na manhã

 

O sol em mim que se derrete

E alimenta as veias do meu cansaço

Às árvores os pássaros

Ao poema as palavras

 

Que jorram do meu sangue em cadáver

E se cruzam na esquina da rua

Putas em putas os cabelos ao vento

E nas escadas do sótão

 

As migalhas da miséria

Pedacinhos de piolhos

Agarrados ao cobertor

E roem-me os tornozelos de números

 

Complexos infinitos e reais

Vem o vento e leva o cheiro de mim

A carne podre numa cama ancorada à janela

No sótão da casa

 

Casa? Quatro paredes de cartão

No tecto as estrelas do céu

As montras das lojas falidas

E do soalho as pedrinhas do passeio

 

Mergulho

Em ti oração da manhã

E dizem-me que Deus sentado no poleiro

Indiferente arrogante

 

Um político de merda

Como todos as merdas

Indiferentes

Arrogantes.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 16:43

19
Jun 11

O silêncio poisa em mim.

Despeço-me da tarde como se fosse um meteoro em movimento, a saliva em pequeníssimas gotas de saudade alimentam-lhe os lábios confusos, e numa árvore inerte sorriem-lhe os seios empapados nas mãos da menina que brinca junto ao mar,

Saberá Deus o que está a fazer.

O silêncio bate à porta, a mulher abre-a, e quando percebe que é o silêncio, os lábios dele em mordidelas nos cigarros imaginários, na lareira extinguem-se livros, e aos poucos, em quase nada, as palavras sobem a chaminé e em direcção às nuvens, pelo caminho, pelo caminho as sílabas em abraços, a mulher deita-se na cama e faz amor com o silêncio, ele indiferente, e a olhar os livros em cinzas, os gemidos da mulher sobre o silêncio,

Como me excito enquanto escrevo.

Os seios empapados nas mãos da menina que brinca junto ao mar, e ontem o mar no meu quintal, e hoje quando abri a janela, já não mar, hoje abri a janela e uma interminável imensidão de lágrimas, pedras e fraguedos, algas penduradas nos cortinados das janelas, e o cheiro intenso a gaivotas mortas, o cheiro intenso a sexo que do primeiro andar desce as escadas silenciosamente, a mulher enrola-se nas paredes do quarto e no silêncio alicerça a cabeça,

Tenho medo da noite.

Ele perde-se nas labaredas que consomem todos os livros e todas as palavras, do quarto deixa de ouvir os gemidos da mulher, tira os óculos e poisa-os sobre a mesa, senta-se no chão frio de mármore, cruza as pernas, deita-se, abre os olhos e junto à lâmpada incandescente, Deus que escreve no gesso lastimoso do tecto,

Isto não faz sentido; nascer, viver e morrer, porquê?

A mulher dorme profundamente sobre a cama amarrotada de desejo, nas coxas as brilhantes pétalas de suor, olha-a e da janela vê o mar que regressa ao quintal, as algas saltitam dos cortinados e as gaivotas aos poucos ressuscitam, Deus deixa o tecto rancoroso do rés-do-chão e sai pela porta em direcção à água, e esconde-se na crista das ondas, a espuma em sémen que galga as árvores, e ela aos gritos,

Vim-me.

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

19 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:43

19
Mai 11

A minha mãe diz que deus me vai ajudar, e ajuda nenhuma, e eu tão estúpido, e eu tão ignorante, e eu tão parvo que sou capaz de dar os únicos cinco euros que tenho na algibeira, ficar liso durante dois dias, e a minha mãe confiante que deus me vai ajudar, e ajuda nenhuma, a Ajuda enrolada nos paralelos da calçada junto a Belém, ao fundo olho o rio, sento-me no chão, os barcos em corridas aceleradas, e os barcos levam-me para ontem, e ontem eu descia a calçada, os cigarros não faziam fumo, os cigarros apagados no escuro, a ponte a chamar-me, quero ir para o outro lado, e as minhas pernas enterradas no silêncio da noite, os barcos estão magros, os barcos com fome, e da noite,

 

- e da noite balança o meu corpo suspenso numa gravata, e da noite vêm até mim as gaivotas que procuram as ruas da cidade, mas a cidade tão distante da minha sombra, mas a cidade encarcerada na minha mão que treme, e não sei porque me tremem as mãos, mas sei porque são magros os barcos,

 

A minha mãe diz que deus me vai ajudar, e subo a calçada e deixo a Ajuda adormecer na noite, maldita calçada, maldita noite, maldita calçada da Ajuda, que sempre que preciso, que sempre que preciso Ajuda nenhuma.

 

Ao fundo olho o rio, sento-me no chão, os barcos em corridas aceleradas, o meu triciclo à minha espera no quinta em Luanda, o quintal dorme, e o meu triciclo corre no quintal à procura da sombra das mangueiras, ao fundo olho o rio, sinto as lágrimas do Tejo quando a minha mão toca nos seus lábios, finjo que choro, e eu não choro, eu nunca choro, eu deitado no chão de barriga para o ar, as mangueiras não me deixam brincar, e o meu triciclo, o meu triciclo em conversa com a minha mãe,

 

- deus vai ajudá-lo…

 

E Ajuda nenhuma, a Ajuda uma calçada encalhada junto ao Tejo.

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

19 de Maio de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:59

11
Mai 11

A voz poética e inspiradora, e quando ele triste, ouve incessantemente esta música, e adormece embrulhado nas palavras, agarradinho aos sons melódicos… e espera a chegada da manhã.

Sobre a mesa-de-cabeceira ele guarda os óculos que o ajudam na procura das palavras quando estas vêem até à janela e da janela voam até ao espelho pendurado numa parede triste, numa parede feia, numa parede velha, esta música ajuda-o na viagem até às galáxias mais distantes e fora do nosso universo, deus sentado no fim de tarde, juntinho ao cais, à espera das ondas que vêem de longe e vão para longe, levam bálsamos lábias no esquecimento da sombra das árvores que gemem no mostrador de um relógio de pulso,

- Ai que frio,

Balançam na tarde em termino e sacodem os pássaros irritantes que poisam nas suas costas, choram, tremem na incandescência dos minutos perdidos com uma conversa perfeitamente estúpida, perfeitamente sem nexo,

- Que importa se deus criou ou não o universo?

Ai que frio.

A voz poética e inspiradora, e quando ele triste, ouve incessantemente esta música, e adormece embrulhado nas palavras, beija-as no silêncio da noite e o som entranha-se dentro dele, e das palavras crescem flores, e nas nuvens um poema despe-se, sorri e juntamente com as palavras olham deus sentado junto ao cais…

 

 

 

(texto de ficção sobre a música, Simple Words - Fingertips)

Luís Fontinha

11 de Maio de 2011

Alijó

(http://youtu.be/1fsyeauLv7Q)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:04

03
Mai 11

Cresci a não acreditar em Deus, e hoje se me perguntam se acredito, a resposta obvia é não, mas por um segundo apenas vou colocar a hipótese da sua existência, e durante esse instante não o vou criticar por a minha vida, desde miúdo, ter sido um inferno, durante esse segundo ele sabe, ele sabe que não tenho emprego e às vezes vivo miseravelmente, e ele também sabe quais os meus sonhos, ter trabalho, escrever e publicar, pintar, terminar o meu curso de engenharia, ele sabe e se eu tivesse a oportunidade de lhe fazer um pedido, apenas um só, abdicava de todos os meus sonhos, todos, e pedia-lhe apenas que não a deixe morrer.

 

Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:55

11
Abr 11

São as palavras que alimentam o meu corpo

Nas palavras que roubo aos meus livros

São as palavras que vagueiam no meu cigarro

Das noites de delírio

 

Quando nas palavras

Uma caneta se revolta

E o papel ensonado

Com as palavras amarrotadas

 

Na noite sonâmbula

Um sino corre na torre da igreja

E eis a entrada triunfal de deus…

Que em vez de me trazer comida

 

Traz-me palavras…

Palavras de merda

Sílabas em migalhas

Deixadas ao acaso numa qualquer sanita da cidade

 

São as palavras que alimentam o meu corpo

Nas palavras que roubo aos meus livros

Das palavras que me prendem ao silêncio

Nas palavras dos meus dias sofridos…

 

 

FLRF

11 de Abril de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 16:10

09
Abr 11

Eu pescador

Sem corpo para habitar

Sonâmbulo do movimento rectilíneo uniformemente acelerado

À procura dos duzentos e seis ossos junto à maré

 

E a maré

Um chuto no cu

Manda-me trabalhar

Eu pescador

 

Sem embarcação

Sem barco para atracar

 

Eu pescador

Ateu e dissidente de esquerda

Preciso já

É urgente ter um cadáver

 

Um corpo para brincar

Um sorriso onde me agarrar

Uma rede para lançar ao mar…

E a maré

 

Eu pescador

Sem corpo para habitar

Sem deus para me zangar

E chamar-lhe nomes feios

 

E atirar-lhe com os meus duzentos e seis ossos às fuças

Desenhar-lhe caretas na areia

Fazer-lhe festinhas nas trombas…

Eu pescador

 

Eu pescador perdido junto ao mar

Abandonado por deus

Com duzentos e seis ossos e alguns em bom estado

Com duzentos e seis ossos para penhorar…

 

 

FLRF

9 de Abril de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 16:58

01
Abr 11

Quando me encosto na manhã submersa

Peço um simples desejo

Um só

Que nas nuvens cresça a esperança

 

E que amanhã

A tua mão poise no meu peito

Peço e rezo

E eu não sei rezar

 

Mas deus compreenderá

Deus estará ao teu lado

Pegará na tua mão…

 

Se deus quiser

 

Se ele quiser te salvará.

 

 

FLRF

1 de Abril de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:28

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