O vento revoltava-se na parada do quartel, ao longe a ponte suspensa por cabos de aço, do Tejo apenas o cheiro que se entranhava nos nossos corpos ancorados às páginas dispersas que na parede da arrecadação um calendário nos olhava, fumávamos cigarros fora de validade, ficávamos com tonturas, e o Tejo no nosso colo, e o Tejo enrodilhado nos cortinados poeirentos, e da noite entrava o jantar recheado de sopa intragável e raquetes da tropa, mais conhecida no mundo artístico por solha, maldita, malditas janelas viradas para o quelho, nas traseiras prédios em ruínas agarrados ao silêncio, nos olhos as lágrimas, roupa a saltitar nas janelas e que nos espiavam na noite, eu, eu com tonturas,
- Eu dentro da arrecadação de óculos de sol, os meus olhos aumentavam de peso e volume, saiam-me das orbitas e pareciam dois berlindes que se faziam passear no corredor, os cigarros fora de validade, o meu corpo não lá, o meu corpo no Texas em Cais de Sodré, e dentro do armário, na camarata, à minha espera o livro de Boris Pasternak “Doutor Jivago”, acordava durante a noite com os berros das ratazanas em luta, o sangue caminhava no corredor, fechávamos as portas e elas ao sabor dos nossos pontapés, e eu de óculos de sol fixando o tecto, e defecar um martírio e um dilema constante com a retrete turca, ou bem que devia cagar ou estar de olho nos colhões porque as ratazanas através do cano de esgoto vinham passar a noite ao nosso lado,
Embebedavam-se e como nós fumavam cigarros fora de validade, tontas, rodopiavam junto às baratas e as baratas brincavam na loiça, uma merda, ratazanas, baratas, formigas e cigarros fora de validade, olhava-se o rio, e junto à margem um cagalhão a tomar banho, a roupa pendurada nos prédios do quelho acenava-nos mas o vento balançava-nos como se fossemos um ramo de oliveira, uma folha de papel azul com vinte e cinco linhas a fazerem queixa de mim,
- E eu a subornar o gajo da justiça com uma caixa de laranjas e um garrafão de vinho, manteiga em pacotinhos e meia dúzia de latas de sumo, e a estes filhos da puta tudo lhes servia,
Ratazanas percorrendo cada milímetro do subsolo, e eu, e ele, corríamos a parada durante a noite com uma geringonça mais parecendo uma máquina de sulfatar a que chamavam máquina fotográfica, recolhíamos as sombras, mas quando íamos ver as imagens, imagens nenhumas, o vento tinha-as levado para o Tejo, o vento da Ajuda comia-nos em pedacinhos, a nós, às baratas, às ratazanas e às formigas, e até as putas e os paneleiros de Cais de Sodré eram engolidos pela noite…
(texto de ficção)
Luís Fontinha
31 de Maio de 2011
Alijó