Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

31
Mai 11

O vento revoltava-se na parada do quartel, ao longe a ponte suspensa por cabos de aço, do Tejo apenas o cheiro que se entranhava nos nossos corpos ancorados às páginas dispersas que na parede da arrecadação um calendário nos olhava, fumávamos cigarros fora de validade, ficávamos com tonturas, e o Tejo no nosso colo, e o Tejo enrodilhado nos cortinados poeirentos, e da noite entrava o jantar recheado de sopa intragável e raquetes da tropa, mais conhecida no mundo artístico por solha, maldita, malditas janelas viradas para o quelho, nas traseiras prédios em ruínas agarrados ao silêncio, nos olhos as lágrimas, roupa a saltitar nas janelas e que nos espiavam na noite, eu, eu com tonturas,

 

- Eu dentro da arrecadação de óculos de sol, os meus olhos aumentavam de peso e volume, saiam-me das orbitas e pareciam dois berlindes que se faziam passear no corredor, os cigarros fora de validade, o meu corpo não lá, o meu corpo no Texas em Cais de Sodré, e dentro do armário, na camarata, à minha espera o livro de Boris Pasternak “Doutor Jivago”, acordava durante a noite com os berros das ratazanas em luta, o sangue caminhava no corredor, fechávamos as portas e elas ao sabor dos nossos pontapés, e eu de óculos de sol fixando o tecto, e defecar um martírio e um dilema constante com a retrete turca, ou bem que devia cagar ou estar de olho nos colhões porque as ratazanas através do cano de esgoto vinham passar a noite ao nosso lado,

 

Embebedavam-se e como nós fumavam cigarros fora de validade, tontas, rodopiavam junto às baratas e as baratas brincavam na loiça, uma merda, ratazanas, baratas, formigas e cigarros fora de validade, olhava-se o rio, e junto à margem um cagalhão a tomar banho, a roupa pendurada nos prédios do quelho acenava-nos mas o vento balançava-nos como se fossemos um ramo de oliveira, uma folha de papel azul com vinte e cinco linhas a fazerem queixa de mim,

 

- E eu a subornar o gajo da justiça com uma caixa de laranjas e um garrafão de vinho, manteiga em pacotinhos e meia dúzia de latas de sumo, e a estes filhos da puta tudo lhes servia,

 

 Ratazanas percorrendo cada milímetro do subsolo, e eu, e ele, corríamos a parada durante a noite com uma geringonça mais parecendo uma máquina de sulfatar a que chamavam máquina fotográfica, recolhíamos as sombras, mas quando íamos ver as imagens, imagens nenhumas, o vento tinha-as levado para o Tejo, o vento da Ajuda comia-nos em pedacinhos, a nós, às baratas, às ratazanas e às formigas, e até as putas e os paneleiros de Cais de Sodré eram engolidos pela noite…

 

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

31 de Maio de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:08

06
Mai 11

O silêncio dói

A solidão mata

 

E a mim, quem me ajuda?

 

Todos precisamos de viver

Todos

 

E a mim, quem me ajuda?

 

O silêncio dói

A solidão mata

As nuvens são negras

E o sol deixou de brilhar…

 

E a mim, quem me ajuda?

 

 

Luís Fontinha

6 de Maio de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 11:08

07
Abr 11

O peso do meu corpo evapora-se por entre o fumo do meu cigarro, sinto-me aos poucos levitar por entre as águas de um velho com lágrimas, e no seu rosto poisa a minha mão, peço-lhe ajuda, e na calçada a minha sombra percorrendo as tasquinhas pedindo esmola, eu descalço, eu sem roupa vagueando junto ao Tejo, chamam-me do rio que desaparece ao fundo da calçada, na esquina o meu corpo transformado em vapor, suores numa madrugada de Agosto, o frio entra-me nos ossos e adormece os meus olhos, e perco a noção de beleza.

Odeio as flores.

Odeio o mar.

Odeio o rio que aos poucos me viu nascer e ainda hoje espera por mim junto à calçada.

Odeio as gaivotas e os livros e odeio a poesia e a literatura.

O peso do meu corpo evapora-se por entre o fumo do meu cigarro, sinto-me aos poucos levitar na mão de um mendigo, percorro as tasquinhas pedindo esmola, e da ajuda apenas me vem à lembrança os paralelos da calçada e um candeeiro na esquina junto ao museu dos coches.

Odeio as flores.

 

 

(texto de ficção)

FLRF

7 de Abril de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:14

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