Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

02
Fev 13

Parecíamos pássaros vestidos com casacos de aço inoxidável e voávamos e voávamos, e voávamos como se lá fora existisse um fio de silêncio que nos sufocava e víamos às vezes o colar de pérolas da bruxa má, a mulher velha que vivia na cabana de pedra com acesso ao destino, perguntávamos-lhe se um dia alguém nos ia apanhar e cozinhar em chapas de alumínio com molho de rosas em pétalas vermelhas, respondia-nos sempre a resmungar que

Parvalhões de pássaros que nunca aprendem que o destino não existe,

E eu, e eles, elas, acreditávamos que sim, que o destino não existia e era invenção de um velho a que toda a gente chamava de Armindo e diziam as más línguas que era ele o responsável pelo andamento do tempo, pois fazia-se passear durante a noite com uma enorme manivela que servia para dar corda às pesadíssimas roldanas de papel, os segundos transformavam-se em minutos, e os minutos corriam de mão dada com as horas, depois, muito depois as horas vestiam-se de dias, de semanas, meses, e anos, à espera

Parvalhões de pássaros que nunca aprendem que o destino não existe,

Que o amor acordasse numa janela de vidro sem cortinados, apenas a preto e branco a imagem dela, a manhã móvel e soalheira do ainda não acordado Sábado, tínhamos poesia e fatias de pão com manteiga derretida nas palavras de ninguém, que o amor acordasse, se transformasse em homem, se transformasse em mulher, se

À espera que dos parvalhões pássaros nasçam parafusos de areia e beijos de cetim, e beijos de chita, e beijos com beijos em beijos quando desce a noite e entra no púbis das mãos de linho, a minha mãe passava tarde intermináveis a construir colchas de renda, e eu, quando a apanhava distraída, roubava-lhe os novelos de linha para os meus papagaios de papel, e voávamos e voávamos, e voávamos como se lá fora existisse um fio de silêncio, um fio de silêncio com hálito a renda floreada, lindas, belas, elas

As colchas de renda, voavam também elas como se fossem papagaios à procura dos lábios da paixão, vivíamos prisioneiros a uma cratera de tesão que o meteorito tinha deixado nos nossos corpos flácidos, como as toalhas de linho da avó Silvina, e elas

Se

À espera dos parvalhões pássaros,

Pássaros vestidos com casacos de aço inoxidável e voávamos e voávamos, e voávamos como se lá fora existissem madrugadas sem portas, como se lá fora existissem alvoradas sem telhados, como se lá fora existissem dois pequenos corpos nas mãos do velho Armindo, ele hesitava

Ou pego neles ou pego na manivela e dou andamento ao tempo, curiosamente nós também não sabíamos, e ela dizia-me que tudo era culpa de Einstein, e eu

Enquanto fumava cigarros com sabor a chocolate não percebia o que tinha Einstein a ver com o que se tinha passado connosco, mas fingia acreditar, como finjo acreditar em tudo aquilo que me dizem, que me disseste, e dizes

Mentiras de porcelana com dentes de marfim, não importa, um dia voltarás como voltam os pássaros, todos os anos, vestidos com casacos de aço inoxidável, voltarás um dia, a não ser que

O velho Armindo deixe de dar à manivela e o tempo cesse em nós como cessaram todos os desejos de todas as palavras, como cessaram todas as árvores e todos os rios, e lá fora, ao longe, uma fragata de pano voa como voávamos antes de chegarem as amendoeiras em flor, ao longe, muito longe, como cessaram as lâminas de pele húmida com gotinhas de suor, se os

Parvalhões dos pássaros aprendessem que o destino não existe,

Tínhamos os casacos mais pesados da cidade, e ninguém ao regressarmos do dia para vermos, aos poucos, erguer-se a noite entre os mastros de madeira com as velas de pano amarrotado, sujo, levemente cintilante como as lâmpadas das escadas que nos levavam até ao telhado, sentávamos-nos sobre as telhas invisíveis e falávamos com a lua de prata que sombreava as minguas mãos dos vagabundos esquecidos sobre as lareiras de vidro, tínhamos os casacos mais pesados da cidade, e ninguém

“Pesadíssimas roldanas de papel, os segundos transformavam-se em minutos, e os minutos corriam de mão dada com as horas, depois, muito depois as horas vestiam-se de dias, de semanas, meses, e anos, à espera

Parvalhões de pássaros que nunca aprendem que o destino não existe,”

Ninguém queria saber de nós; de mim, de ti, deles, delas, dos pássaros e dos casacos de aço inoxidável.

 

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 20:21

22
Jul 12

Das quatro paredes de cianeto

onde habita o amor inventado

nas quatro palavras murmuradas

do amor embrulhado em pedaços de jornal

e sorrisos de prata

das quartas-feiras com chá melancólico

e abraços invisíveis

ao meu corpo

indesejado

das quatro paredes

em tectos de solidão

palavras de cianeto

 

o meu corpo desgraçado

suspenso no vidro ténue do fim de tarde

entre o suicídio dos barcos

e a alegria da minha partida para longe

sem destino

sem regresso

 

que feliz o amor

que vive dentro de quatro paredes de cianeto...

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:55

17
Jul 12

Os olhos de vidro

da melancolia

sem destino

dentro de um livro abandonado

 

o frio poema mergulha

na febre labial das estrelas

a lua em ondas curtas

à volta dos gemidos do sol

 

os olhos de vidro

no livro sem sentido

 

a melancolia sem destino

na tristeza dos meninos

que se escondem na chávena de chá

e das torradas do peque-almoço

 

sem saudade

sem perceber que das paredes da felicidade

brotam fios de luz

e dias desalinhados

 

de vidro

de vidro se partem as flores do amanhecer

de vidro

os olhos

e a caneta de tinta permanente

de vidro

de vidro o amor invisível e proibido...

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:52

21
Mai 12

Há sempre alguém à nossa espera, o sol, a chuva, o vento, o mar, os lençóis de um divã, ou um petroleiro engasgado no sofrimento do rio, há sempre um cubo prisioneiro numa janela de primavera sem telhado, há sempre uma mulher suspensa no arame de luz que atravessa a rua, há sempre um automóvel pronto a caminhar sobre o meu corpo, há sempre um pano negro que ofusca o meu olhar, uma nuvem cinzenta que dissipa os meus sonhos, há sempre

 

- o dia disfarçado de noite, a luz disfarçada de chuva, o amor vestido de gangster e de metralhadora ao ombro, o homem de túnica encarnada a dançar sobre as pedras da calçada, o girassol murcho nas mãos de uma criança, o rio sem nome em direcção ao mar,

 

Há sempre, uma cidade que deixou de existir, uma escola que cresceu e hoje é o cemitério onde são enterrados todos os livros de poesia, há sempre, a rua da saudade paralela à rua do desejo e atravessa a rua da solidão, há sempre, a vida pintada de muitas cores numa tela de vidro, a boca louca em busca do beijo, a flor cansada que procura a carícia do jardineiro, sempre

 

- há bolachas sem cigarros, orquídeas em papel nas paredes do meu quarto, a clarabóia acaba de morrer e leva-a a noite para longe,

 

Portanto..., diria que há sempre um dia, uma noite, uma manhã sem sentido, o pequeno-almoço, jantar, lanche e almoço, a Eucaristia, há sempre

 

- deus a castigar-me, há sempre alguém à nossa espera, a chuva, o vento, as nuvens, um petroleiro louco nos carris do destino, deus cansado de me ouvir, deus à procura dos lençóis de nylon gamados na feira da ladra, o relógio, há sempre um relógio a controlar-me, sempre a odiar-me, sempre pertinho de mim,

 

Há sempre uma mão que cerras olhos quando eu atravesso a rua,

 

- sempre, pertinho de mim.

 

Uma mão imaginária de óculos escuros.

 

 

(texto de ficção não revisto)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:43

26
Mai 11

Sou filho do cruzamento de caminhos e de um emaranhado de fios suspensos nas estrelas nos céus de Luanda, e quis o destino que eu possivelmente fosse concebido na Vila Alice, onde dei os primeiros passos, e os meus pais conhecerem-se no Bairro Madame Berman, mas, e há sempre um mas, mas,

 

- ele nasce em Alijó e aos doze anos ruma a Mirandela para trabalhar numa oficina de automóveis, descontente com a vida, aos dezassete vai à procura de aventura e poisa em Angola, poisa como quem diz, foi levado por um paquete, percorre várias zonas de Angola e acaba por ir até ao antigo Congo Belga onde esteve trinta dias conjuntamente com outros, protegidos pelos capacetes azuis, eu diria presos, pois eles não podiam sair do local onde estavam, e essa aventura valeu-lhe enjoar o arroz com chouriço, e um dia fartou-se, e um dia consegue fugir e assaltar uma fazenda onde ao final da tarde aparece no acampamento com diversos cachos de bananas, trinta dias a mastigar arroz com chouriço, ao almoço, ao jantar, ele farto,

 

E agora percebo a minha pancada, não muita, alguma, percebo quando pego nos dois álbuns de fotos do meu pai, todas de Angola, onde aparece de calças esticadinhas, sapatos afiadinhos na ponta, gel no cabelo e óculos de sol, ele empoleirado numa lambreta, ele um boémio que muda de vida após o casamento, e quis o destino que ela, ela,

 

- nasce em Carvalhais, S. Pedro do Sul, aos sete meses dá um pulinho até Oliveira de Frades e aos cinco anos, aos cincos anos em Angola onde fez a instrução primária na missão de S. Paulo, em 1961 vem a Portugal de férias e no regresso, no regresso a Angola conhece aquele que foi, e continuará a ser, o amor da sua vida e meu pai, e ela hoje, ela hoje com saudades dos vinte anos que viveu em Luanda,

 

Sou filho do cruzamento de caminhos e de um emaranhado de fios suspensos nas estrelas nos céus de Luanda, e tenho um sonho, terminar os meus dias na baía de Luanda, sentado numa cadeira, e olhar o mar…

 

 

Luís Fontinha

26 de Maio de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:52

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