Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

29
Abr 13

foto: A&M ART and Photos

 

 

Percebia-se, pelas tuas nádegas de algodão, que a noite entranhava-lhes como pássaros na algibeira de um mendigo, dormiam em caixas de papelão, pobrezinhos, escreviam sobre as ombreiras do ensonado dia, “caixas simples cartão”, porque era chique, porque estava na moda, porque ao fundo da rua sentia-se o ressonar da lua, e a transpiração de saliva dos pulmões de aveia, não tínheis pequeno-almoço, preçário, cardápio ou subsídio diário, uma sandes de pouca coisa, ou quase anda, chorava no interior de duas finas fatias de pão, sem saberdes que lá fora, ao longe, de uma escada em madeira, desciam os anjos e os gemidos silêncios da verdura que cobrem os campos da aldeia, como pedras, lajes de granito, lápides em cimento, e aos poucos, de poucos, apagariam-se-lhes todas as letras da literatura pura e nua, entre desenhos e sílabas, entre candeeiros de vidro e lâmpadas de papel,

gostava muito de ti,

Desenhava-te no espelho da montra do senhor Ernesto, em traços finos, colocava-te sobre os olhos um fio doirado de cabelo, dava-te lábios com sabor a chocolate, tinha-te na boca como oxigénio essencial à minha respiração, ouviam-se coisas mortas, objectos despedidos, canas de pesca, carretos e chumbeiras, bóias, anzóis e as pesadíssimas botas de borracha, e mesmo assim, ouvia-te

gosto de ti,

Percebia-se, pela ausência de cubículos para todos, que nem nus somos iguais, uns, mais diferentes do que outros, e havia sempre um que ficava sem onde pernoitar na fria noite de Janeiro, aqui, porque lá, bastava-lhe cobrir-se com um ramo de palmeira, havia um largo, eles abraçaram-se longamente e esqueceram-se que eram uma rocha à beira do rio, do largo, mais acima, uma duas palmeiras adormeciam já devido às distantes horas que estavam previstas para regressarmos, nem um único som, uma única palavra, nada

só e só o beijo da despedida,

Só e só, e não muito mais, como anos depois, as palmeiras continuam adormecidas, mais velhas, claro, mas ainda estão vivas, não há muito tempo, estive com elas, almoçamos juntos, e recordamos noites, noites, noites que eu mesmo já tinha esquecido, falaram-me de uns pássaros que poisavam nos nossos ombros, e também de umas flores, se não estou enganado, isto é, se não fui enganado por elas, de umas flores amarelas, ou cinzentas, ou

gostava muito de ti,

Ou incolores, como os beijos, ou indolores, como as ondas do Oceano que ficávamos a olhar até desaparecerem sobre os telhados de Lisboa, o cheiro do rio entrava dentro dos nossos corpos escondidos em caixas de papelão,

“caixas simples cartão”

E hoje, quando estou no largo, debaixo das velhas palmeiras, ao longe a lua em movimentos descoordenados, sem luz de candeeiro, dos minguados olhos que o sol deixou sobre a mesa-de-cabeceira, e derramadas sombras construindo imagens na esplanada dos arbustos com braços negros e pernas encarnadas, perguntava-te pelas cartas perfumadas, e tu

queimei-as, porquê?

Apenas pelo perfume, porque pelas palavras perdia o sentido das letras, deixei de amar palavras, frases, livros, cadernos, poemas, “... e toda a merda comestível...”, só e só pelo perfume, só e só quando desce a noite e de barriga para o ar, eu deitado, olho o tecto, vejo estrelas azuis, estrelas pretas, estrelas... como chuva friorenta em Primavera, e só e só, tenho saudades do perfume

das amoreiras em flor, das mimosas, de deitar-me no chão e fazer desenhos imaginários no céu nocturno da cidade, a cidade proibida, com calçadas, ruas, ponte e pontões, “putas” e “cabrões”, a cidade dos barcos com ferrugem, a cidade das casas comestíveis depois da sobremesa, e homens com alegria, e homens em bebedeira em fila Indiana para ter acesso a uma merda de uma caixa de papelão,

“uma linda caixa em fino cartão, três assoalhadas, uma varanda para o Tejo, casa de banho completa, e ascensor, e muitas cartas, cartas de amor, todas elas, perfumadas...”

E eu dava-lhe a mão, e passávamos a noite dentro do ascensor, em subidas, em descidas, e às vezes

parávamos, e esquecíamos-nos que algum dia estivemos debaixo de duas velhas palmeiras a construir o beijo mais literário de sempre, o beijo poético

E às vezes,

o beijo fatídico,

E às vezes adormecias nos meus braços...

 

(ficção não revisto)

“Alguém vai dizer: ficção o caralho...!”

@Francisco Luís Fontinha

foto: A&M ART and Photos

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:25

23
Fev 13

Inventas o espelho, e o caixilho onde dorme o espelho, inventas o prego, onde penduras o espelho, e a parede, inventada por ti, inventas a sombra que escurece o espelho, onde te olhas, onde fumas, o cigarro inventado, pela secura do silêncio agachado no pavimento ósseo com ripas de fumo e pedacinhos de suor da tua pele perfumada, a água inventada, inventas com as tuas mãos as calibradas pálpebras (de) (da) madrugada, perdem-se os sossegados momentos de literatura dentro da esplanada vestida com as roupas por ti, inventadas

Todos Todas Adivinhos,

Dos murmurados alpendres onde me arrumavas os braços e as pernas depois de me usares,

Acordavas cedo, puxavas as cordas da noite e começava a clarear o dia, inventavas

Descobri tardiamente

Que inventavas os dias só para mim, como o jardineiro quando sente que uma fina pétala se desprende do esqueleto da Cinderela e também ele, inventa as espinhas que sobejaram dos peixes de madeira que a filha fez numa das aulas de Trabalhos Manuais, ele aprendeu a pregar botões e a fazer uma simples instalação eléctrica, e com alguma picadelas nos dedos de areia

Descobri tardiamente que não tinha jeito para invenções,

De areia como as línguas de fogo que começaram a descer dos telhados de vidro das casas dos mais enlouquecidos pasteis de nata, do Rossio até Belém, aproveitando o vento e o sabor a morango do rio, a cidade ia ficando-se

Como tu antes de inventares esse maldito espelho onde te olhas ao acordar, a janela do dia de ontem, onde vês o restaurante encerrado por falta de clientes, as cadeiras vazias onde se sentavam as galdérias noites e candeeiros a petróleo que a cidade rejeitava, ouvíamos um banco de jardim a passear junto à Torre de Belém, fumava cigarros de enrolar, tinha na cabeça uma pano vermelho, e era alimentado por painéis lunares, e

Saltitava-lhe da voz

Todos Todas Adivinhos,

A rouquidão do prazer quando os mamilos da Cinderela, colorida com os lápis de cor da miúda, a filha da Rosalinda, chegava da escola, e poisava a mochila no pátio de gelo em frente ao pindérico jardim onde brincava um casebre empobrecido, delata, e um olho em xisto, E

E

Saltitavam-lhe da voz as laranjas podres e os limões sem as palavras que tu

(Inventas no espelho, e no caixilho onde dorme o espelho, inventas no prego, onde penduras o espelho, e na parede, inventada por ti, inventas na sombra que escurece no espelho, onde te olhas, onde fumas, no cigarro inventado, pela secura do silêncio agachado no pavimento ósseo com ripas de fumo e pedacinhos de suor da tua pele perfumada, na água inventada, inventas com as tuas mãos as calibradas pálpebras (de) (da) madrugada, perdem-se nos sossegados momentos de literatura dentro da esplanada vestida como as roupas por ti, inventadas

Todos Todas Adivinhos),

Inventavas os diários de prata, de uma cigarreira simples, modesta, honesta, uniformemente acelerada, como o movimento dos teus olhos depois de fazeres O Amor,

Esquadro, Régua, Lápis e Borracha, Uma folha eterna de papel

E o dito O Amor deixa as marcas de sujidade nas nuvens dos céus tempestuosos da cidade envergonhada, a casa

Treme, o teu espelho

Recordas-te? Aquele, o inventado por ti...

Esboça pequenos círculos de Ilhas embebidas em vulcões e andorinhas selvagens, e vêem-se os distantes rochedos onde deixavas as minhas cartas, e depois, de mastigares todas as minhas palavras, inventavas-me entre os pilares de açúcar e o medo das noites com lâmpadas quadradas nas paredes de vidro dos tectos falsos das gargantas das mulheres apaixonadas, pelo vento entravam todas as manchas de óleo e os pedaços de saliva, que o mar, do outro lado da cidade, cuspia contra os táxis e os barquinhos de papel com desenhos de flores e casinhas castanhas com uma árvore negra, hoje, logo hoje, perdi as palavras dos teus cabelos

Castanhos,

Negros,

Azuis quando desces à fundo do Oceano,

(de suor da tua pele perfumada, na água inventada, inventas com as tuas mãos as calibradas pálpebras (de) (da) madrugada), e vinte e oito anos depois, a morte, a morte trouxe-lhe o sossego, a morte trouxe-lhe a paz, a morte trouxe-lhe o encantado quarto enfeitado com verdes panos e lilases veludos que a mesma morte tinha comprado em São Tomé e Príncipe, e descansasse na Paz dos Anjos,

Como qualquer espelho inventado tem direito.

 

(ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 20:09

17
Abr 12

Pareço um espelho

poisado sobre o pavimento molhado

incenso e marfim

nas algibeiras da tarde

e tudo à minha volta arde

e tudo à minha volta

incenso e marfim

e fios de nylon

descem das árvores doentes

incenso e marfim

contentes

nas algibeiras da tarde,

 

pareço um espelho

um palhaço que brinca na esplanada do Baleizão (Luanda)

entre cadeiras imaginárias

e migalhas de pão,

 

pareço um espelho

made in China,

 

(um homem sem destino

desde menino)

 

entre cadeiras imaginárias

e madrugadas de cetim

antes do pequeno-almoço

ao virar da esquina

no centro do jardim

um espelho,

 

nas algibeiras da tarde.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 15:42

11
Mai 11

Hoje olhei-me ao espelho, não reconheci a imagem reflectida, aguardei uns segundos, abri e fechei os olhos, voltei a olhar, e o que vi não foi o meu rosto, vi o meu cansaço impresso na luz, vi as minhas mãos penduradas no guarda-fatos, e vi à minha volta os pássaros da manhã saltitando na janela do meu quarto.

 

Pergunto-me o que foi feito do meu rosto durante a noite, pergunto-me onde estará neste preciso momento o meu rosto, entretanto calculei que o meu rosto voltasse a mim, corri para o espelho do meu quarto, mas em vão, o meu rosto desapareceu para sempre, ausentou-se na noite, cansou-se do meu corpo.

 

E eu, e eu já há muito que tinha deixado o meu esqueleto arrumado dentro do guarda-fatos, agora tenho lá as minhas mão penduradas, e o meu rosto, o meu rosto voou antes de acordar a manhã, hoje olhei-me ao espelho, não reconheci a imagem reflectida, aguardei uns segundos, abri e fechei os olhos, voltei a olhar, voltei a olhar e chego à conclusão que o meu corpo anda disperso por vários locais, e será difícil, vai ser impossível voltar a ser eu.

 

 

Luís Fontinha

11 de Maio de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 10:36

24
Mar 11

Olho no espelho o meu rosto amargo

E tenho medo à minha imagem reflectida,

Sou perseguido pelas sombras da noite

Quando o meu quarto entra em transe

 

E vai esconder-se dentro do guarda-fatos minúsculo.

Se eu pudesse também me escondia

E ao lado da noite construía…

Nada.

 

Que posso eu construir

Quando na minha mão habita a miséria

E no meu cérebro vivem palavras que ninguém,

Ninguém, que ninguém compreende e critica,

 

Pensam que estou louco,

Doente,

Eu doente?

A minha doença chama-me fome…

 

Não aquela fome que o estômago compreende,

A minha doença chama-se fome de sofrer.

Olho no espelho o meu rosto amargo

E tenho medo à minha imagem reflectida;

 

E serei eu o que aparece no espelho?

E se eu for uma abelha

E o que aparece no espelho uma sombra?

E se a sombra for uma abelha

 

E eu o espelho onde habita o meu rosto?

E se abelha deixar de ter asas

E no meu rosto nascerem gaivotas?

Olho no espelho o meu rosto amargo

 

E percebo que hoje é um péssimo dia

Para adormecer…

Porque hoje o meu rosto não voa

Nas asas da abelha…

 

 

Luís Fontinha

24 de Março de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 20:21

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