Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

16
Jun 13

foto: A&M ART and Photos

 

Se dançávamos? Tínhamos acabado de regressar da longínqua sanzala de vidro com cubatas revestidas em saudade e pedacinhos de medo, aquém e além, uma voz fria gritava-nos, e arremessava-nos pedras invisíveis, e eu criança, envergonhado porque não entendia os orgasmos em sombras de café que os adultos deixavam esquecidos nos bancos do jardim, uma penumbra manhã perdi o esqueleto de mim, e de dentro do guarda-fato, divertia-me a pincelar tons mastigáveis na solidão de uma casa pequeníssima, com cinco janelas, e uma chaminé, e durante a noite ouvíamos as lágrimas sorrido parede abaixo... até se derramarem no soalho embrulhado em humidade e caruncho, que em alturas de desassossego, ouvem-se, ouvem-se em pequenas festas como fazíamos quando vivíamos na cidade dos desejos e dos sonhos e dos pequenos mares que entravam em nós, e nunca, nunca mais nos abandonavam,

Voltar?

Se dançávamos, não percebo agora o significado da desordem...

Voltar, em vez de descer, subir, sentar-me sobre o telhado, e ouvir a conversa dos pássaros nas tertúlias tardes dentro das mangueiras, debaixo delas, duas crianças experimentavam a força utilizando um cordel fino, tão fino como o cabelo castanho do velho Domingos, Voltar? Não percebo a desordem dos meus braços, não percebo a rouquidão da minha voz, e... principalmente, tu existes dentro de uma lata de conserva, vestida com um lindo vestido em papel verniz, colorido, e quando chove, ouvem-se-te em pequenas chamas de luz os batimentos de um coração apaixonado, Voltar... nunca, jamais, para quê e porquê?

Se dançávamos? Às vezes...

Voltar e não encontrar as ruas onde as tínhamos deixado, durante a noite, homens, mulheres e algumas crianças, utilizando a única força disponível, mudaram de local todas as ruas da cidade, o mar, hoje, já não está lá, lá, hoje, está um campo de milho que perdemos no horizonte enquanto observamos, e onde havia, antigamente, campos de milho, está lá, hoje, o mar, só, sem ninguém a chapinhar na água salgada e na areia branca, e ninguém nos avisou, e dizem-nos que até a nossa casa mudou de sítio, deslocou-se avenida abaixo, e foi literalmente engolida pela fome, e pelo ódio...

Porquê regressar! Se dançávamos? Olho-me no espelho e vejo o rosto, o meu rosto de menina, de mulher apaixonada, desiludida com as manhãs quando desapareces de mim e ficas só entre papeis velhos e outras fotografias, tão velhas, tão... imagens sem significado, oiço-me de encontro ao espelho, reflecti-me

Evaporaste-te através dos orifícios que sobejavam na cubata, espetávamos pregos sobre um velha carica, servia para isolarmos o mesmo orifício da humidade e dos espíritos malignos dos retratos semeados sobre a mesa-de-cabeceira, raramente conseguias segurar-te e acabavas por tombar sobre o passeio em cimento, dos joelhos, pequenos riscos, cromados gelatinosos aos morangos de um dos canteiros ainda não destruído pelo canino REX,

E porquê se me reflecti num espelho com coração de xisto, dele conseguia-se ver o rio e os socalcos encurvados por carris que nos transportaram até hoje, aqui, à sombra de uma velha cubata, esquecidos na sanzala trémula, vagueando como imagens no lençol nocturno onde brincávamos antes de nos deitarmos, era noite, e o teu rosto imagina-se liberto das minhas mãos, e o teu rosto... também ele, como as ruas e as casas, mudaram-nos de sitio, e hoje habita numa outra cubata, numa outra sanzala... num outro País de sonhos desencantados, falsos sonhos, de um falso espelho; tu

Se dançávamos?

Todas as noites, tu é que não te recordas de mim, da música, e das árvores e dos candeeiros suspensos no tecto do céu...

Claro, claro que dançávamos...

 

(ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:25

17
Mai 13

foto: A&M ART and Photos

 

Descobríamos o sono na literatura das imagens, inventávamos silêncios, desenhávamos beijos nas montanhas do desejo, queríamos voar sobre o mar seara de argamassas em sofrimentos das flores em finas peles de areia, que o sonífero coração envenenado pela solidão, gritava como gargantas envidraçadas, como chuva emprestada, a salsa, a cebola, e os alhos..., acreditávamos que existia além da palavra amor, um corpo, braços, pernas, cabelos, olhos, olhos..., asas, montes e videiras, nuvens, casas, ruas e hospedarias, sentava-me na cadeira da barbearia

é para desfazer a barba,

Adormecia, sentia os relógios do vizinho em horários gemidos, nocturnas horas como pêssegos acabados de colher, subíamos e descíamos, abraçávamos-nos, como ervas, troncos, madeira prensada, apaixonados, nós,

eles diziam-nos para desistirmos,

Acorrentados, tubos de néon assobiavam como lanternas mágicas num espectáculo de circo, encharcados, eles, os artistas, o público, o silêncio, todos, e todas, riem-se porquê? que as imagens deixam o suor sobre a mesa-de-cabeceira, e havíamos de enganar o medo, como se engana a fome, o amor, e a paixão, e todos os corpos possíveis e impossíveis de desejar, e comiam-mos-nos como serpentes correndo em corredores que depois de cremadas, elas, voltavam à plateia, sentavam-se numa simples e singela cadeira de vime, no palco, dois pilares trapezistas vestidos como milhafres anónimos, caminhavam sobre um finíssimo fio de luz, e do outro lado, da tenda, as roulotes miseráveis que o homem de casaco branco deixou ficar como forma de pagamento, em demandada partida, desejou a todos

um santo e feliz natal,

E ainda hoje, o detesto, ao homem e ao natal, sinto-me frágil, como um caixote em madeira, nas minhas costas escrita a palavra “Frágil” e uma seta indicava o sentido único da posição correcta, não tínhamos o Kamasutra dos caixotes que transportavam as nossas bicuatas, e quando cá chegávamos, tudo, quase tudo “fodido”, os pratos, as jarras, e toda a porcaria comestível, tudo, ou quase tudo, em cacos, a vida

em cacos, a nossa vida,

Oh! dó... escroque vidente da literatura, da tua máquina de fazer imagens, eu vivia lá dentro, feliz, como eles, a preto-e-branco, cortinados encarnados, folhas de loiro suspensas sobre a padieira, e uma ténue luz, meramente indicativa, desejava-nos felizes cobertores de espuma, ouvíamos do fundo do corredor, os apitos de barcos como eu, frágeis, de corpo engomado

dói, dói tanto, pensar que se está morto,

Engomado, nós, comíamos-nos como loucos animais acorrentados na jaula do desassossego, ela, ele, e toda a porcaria, aqueles que mal dizem de mim, e da minha vida, todos, como dizia o cineasta “quero que eles se fodam”, claro, só aqueles que falam nas minhas costas, onde tenho inscrita a palavra frágil

eu, um caixote de madeira, pouca coisa, bicuatas, um velho fogão, meia dúzia de pratos, roupa, pouca, calções, sandálias de couro, um parvalhão de um boneco baptizado de chapelhudo, se fosse hoje chamar-lhe-ia de

Orelhudo,

pançudo,

Mudo, porque não ouvimos a sinfonia de cacos, e mesmo assim, em mim, o dito frágil, e uma seta que apontava para o céu, tinha seis anos, e já desconfiava de tudo o que existia acima de mim, abrimo-lo,

E tudo, tudo “fodido”, e tudo, tudo... partido, cacos, eles, elas, nós, a nossa vida, a nossa história, que história, João?

abrimo-lo, e sabes, querido João?

Diz-me,

abrimo-lo como que abre o peito de um corpo em putrefacção, e lá dentro, cacos, cacos e vidas em pequenas fotografias, que vivem, que dormem, dentro, fora, em ti, de ti

Até às tuas coxas e comiam-mos como pássaros loucos nos corredores da morte,

diz-me tu, se amanhã estarás dento de mim, como ainda permanecem todos estes cacos, paquetes, barcos, areia branca, pássaros, gaivotas e coqueiros, ai... ai o hóquei nos finais de tarde, deixei de o ter,

“abrimo-lo, e sabes, querido João?

Diz-me”

perdemos-nos nos semáforos de uma avenida, chamavam-lhe baía, eu, não lhe chamava nada, e tu, e tu, querido João, imaginavas-me, como os cacos, dentro de um caixote,

Frágil, com uma seta apontando o céu.

 

(ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:55

21
Abr 13

Estranhas imagens que o corpo absorve

depois de regressar a tempestade

e a fina areia mergulhar

nas profundezas mãos de sabão,

 

Estávamos loucos quando imaginámos sombras nas janelas do amanhecer

e via-se perfeitamente um cortinado de amargura

rompido e ensanguentado

desértico do amor apodrecido,

 

Descia a noite

e as imagens negras voltavam às tuas mãos

havia uma ressonância de cigarros

embainhados debaixo do tecto das gaivotas que diziam-se perdidamente apaixonadas,

 

Perdidamente

perdidas entre vãos de escadas

e portas emagrecidas

… portas com corações de oiro e olhos madrugadas.

 

(não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 12:13

15
Abr 13

foto: A&M ART and Photos

 

Não me toques, meu amor, não toques nas minhas pétalas, não, por favor, não toques nas minhas imagens, invenções minhas quando a noite mergulha no teu corpo desassoreado, desassossegado, embriagado por palavras e palavras, por luzes, e pelas eternas árvores, não amor, por amor, não me toques,

(três pequenas malas separavam-nos da paixão das almas embalsamadas, tínhamos asas, e tínhamos onde esconder os pequenos sobejos de nós, simples coisas, poucas, das tuas mãos, apenas uma máquina fotográfica, com imagens dentro, e de mim, nada, não esperavas absolutamente nada, a não ser, meia dúzia de livros com bolor, e alguns poemas escritos sobre os teus joelhos, e confesso, sabendo que não me estás a ouvir, e a ver, que esses – Queimaste-os? - claro, assim, despedi-me do teu corpo, como alguns corpos, se despedem suspensos dos ramos de árvore, algumas frágeis, tão frágeis que vergam e partem, e morrem...)

Não, não meu amor, por favor, não toques em mim, não, não me toque – Que dia é hoje, meu querido? - não sei, não, deixei de contar os dias, deixei de apontar as horas na parede em gesso do quarto minúsculo e húmido, e com uma também minúscula janela virada para um quintal de areia, desértico, tão pobre, quase, como os móveis que habitam esta tão acorrentada casa de sonhos, grãos de milho sobre uma eira sem nome, sem destino, sem terra, e queimaste-os dizes-me tu, e claro que te mentia, minto-te, porque sou incapaz de queimar palavras, talvez tivesse coragem de queimar

(corpos?)

Mas destruir palavras, nunca, meu amor, não me toques, por favor, deixa-me, deixa-me...

(corpos, o meu, o teu, o dele, corpos, corpos entre imagens a preto-e-branco, janelas intactas, que depois das tempestades, lá, estão sossegadamente lá, como o estavam antes, como o continuaram depois, e o fotografia não é mais do que uma janela, fixa, sem vidros e inquebrável . Queimaste-os? - baixava a cabeça e não respondia, e pensava, como poderia queimar os teus joelhos... - impossível queimar os teu belos joelhos, meu amor! - e no entanto, mentia-te, dizendo-o quando não o tinha feito, e tu, acreditaste, sempre, que todos os poemas escritos sobre os teus joelhos, coitados, foram todos queimados numa sexta-feira, era Verão, talvez uma tarde de Agosto, e depois, semeei as cinzas sobre a lápide encarnada do batom que passaste a usar nos lábios, sabia-me bem, não sei a quê, talvez – A chocolate? - não, não era a chocolate, talvez fosse a saudade)

Deixa-me, que um dia vais perceber que dentro das minhas imagens existem sonhos, os nossos sonhos, um dia vais perceber que da árvore que morreu devido ao peso de um corpo, outro corpo nascerá, - acreditarás em mim? - e outro, e outro, e outro corpo mergulhará nas imagens que escondo dentro das minhas férteis coxas de silêncio, tu um dia, vais

(corpos – Queimaste-os? - sim, meu amor, sim, sim, queimei-os a todos...)

Vais, vais bater a uma porta com um pedaço de vidro, do outro lado, alguém, mulher, homem ou criança, ou todos, perguntar-te-ão pelos poemas escritos sobre os meus poemas, e tu, responderás

(queimaste-os?)

Não, por favor, não me toque, meu querido, e responderás que os tens dentro de uma caixa de cartão, melhor dizendo, três perdidas caixas de cartão, em que numa delas, três, talve... talvez meia dúzia de imagens, guardas, de mim, do meu rosto, da minha pele, e

(teus joelhos)

Não, não, por favor,

E esqueci como era o teu rosto.

 

(ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:33

08
Mar 13

Ei-lo que se recusará a regressar antes que a ponte velhíssima de madeira se desmorone sobre as pálidas algas das tristes tardes de Inverno, ei-lo, o transeunte mais procurado dos Pinhais de Cima, aldeia pacata e silenciosa que cresceu, aos poucos como um cogumelo de areia, entre as rochas fragmentadas das cabeças ocas dos homens com pernas de cimento, enferrujado o aço, sobejaram algumas paisagens que um fotografo famoso guardou para a posteridade, algumas fotografias a preto e branco, porque ele sempre amou as fotografias a preto e branco e não se cansa de dizer que

São como as mulheres, belas,

Uma fotografia a preto e branco e uma mulher, ambas elas belas, e a diferença está no papel, a fotografia exibe um papel macio, cristalino e cintilante, e a mulher, exibe uma pele de sombras que caminham sobre as ondas cristas que a maré desenha nos desejos depois de partir o pôr-do-sol e antes de regressar a lua,

Ei-lo, o ausente mutante que acreditava nas palavras que lia, ei-lo agachado no pavimento húmido dos quartos reles de pensões miseráveis, e no entanto, ele, preferia as fotografias a preto e branco, e às mulheres, das mulheres recebia uma chave de carícia em formato de três por três e que tinha como objectivo abrir todos os corações mais secretos e encerrados das noites ilimitadas, quando a tangente de (x) tende para uma cama com lençóis de papel e um guarda-fato com um espelho onde se vê o círculo trigonométrico das mulheres de coração claustrofóbico, ele

Sou uma fotografia aparvalhada, vesti-me de palhaço, sem tenda de circo e apenas com uma roulote dei duas voltas à aldeia dos Pinhais de Cima, e desenha no invisível rectas, cubos, círculos, triângulos e meninas de chocolate,

Existem mulheres a preto e branco como fotografias com coxas transeuntes, e têm o coração tão fechado, tão fechado, que nem o amigo Rocha das Chaves consegue abri-los, coisas dos artistas, escritores e poetas, porque se eu tivesse a habilidade que ele tem para abrir fechaduras...

Meu Deus, quantos corações,

(paciência, cada um tem o seu ofício, e eu, não tenho nenhum)

E eu tenho muita, como as árvores, vou esperando que cessem todas as tempestades e que uma nuvem com recheio de amor desça às profundezas das masmorras onde se passeiam correntes e argolas e animais ferozes, a selva desceu à cidade, os rios fugiram para a montanha, e um ditador roubou-nos o mar, mas não nos importamos, já nos roubaram tantas coisas

Que

É mais uma, que diferença faz?

(este bloqueio vai estar activo durante mais 1 dia e 23 horas)

Que nascemos para vivermos sobre tempestades (só alguns) e que também (só alguns) são incapazes de abrir uma simples fechadura, ou

Arrombar a janela de paixão,

Ou levitar sobre os telhados dos Pinhais de Cima, vestido de domador de feras, porque começando por ele, há feras completamente indomáveis como o porteiro do edifício contiguo à repartição onde trabalha o Alfredo, o velho Alfredo que desde que me lembro espera e desespera pelo regresso

E ei-lo que se recusará a regressar antes que a ponte velhíssima de madeira se desmorone sobre as pálidas algas das tristes tardes de Inverno, ei-lo, o transeunte mais procurado dos Pinhais de Cima, aldeia pacata e silenciosa que cresceu, aos poucos como um cogumelo de areia, entre as rochas fragmentadas das cabeças ocas dos homens com pernas de cimento, enferrujado o aço, sobejaram algumas paisagens que um fotografo famoso guardou para a posteridade, algumas fotografias a preto e branco, porque ele sempre amou as fotografias a preto e branco e não se cansa de dizer que são como as mulheres, belas, e como as flores, ainda mais belas que as fotografias, mas

Menos belas que as mulheres a preto e branco.

 

(ficção não revisto)

Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:11

10
Fev 13

Um dia, quem sabe, todos os poemas de Inverno se transformem em rosas, um dia, talvez amanhã, ou, poderá ser mesmo num Sábado qualquer, um dia qualquer, apenas um, de um calendário de papel, ou daqueles virtuais que os nossos portáteis inventam para nós, e tão parvos, eles, que se nós quisermos hoje não é hoje, e se nós quisermos hoje é ontem, Dezembro de 1966, ou, ou se eles quiserem amanhã, amanhã terça-feira de Março de 2015, um dia, quem sabe, todos os poemas

Fiquem como as minhas mãos, pérfidas, com perfume de vulcão estacionado no centro de uma cratera, com nuvem de vapor que fingem ser cortinados, das janelas das palavras, quando chega o murmúrio das imagens a preto e branco do álbum de fotografias do Pai Fernando, Angola está lá, como estão os carris onde ontem passeavam comboios para Mirandela, e hoje, hoje apenas linhas curvas, rectas, círculos de lágrimas das rochas metamórficas com sombras de pedra, ele acompanhava a linha de bicicleta pela mão, chegava ao Tua, e subias as curvas inclinadas com sabor a saudade, apenas, apenas para dar um beijo à mãe, fiquem todas, hoje não, hoje

Os carris e os túneis da saudade dentro de um álbum de fotografias,

Hoje, hoje não, quem sabe amanhã, todos os poemas se transformem em rosas de papel, quem sabe, ontem as flores tenham conspirado contra o homem dos livros de granito, quem sabe, hoje sim, eu, ele, nós os dois, sejamos esqueletos de vidros com mãos de arame, hoje quem sabe, eu, ele, eu e ele, os dois, sejamos pedaços de pedra mármore do túmulo de um dos manuscritos de Gogol que ardeu na fogueira, louco, tu e eu, dentro de um buraco de areia, os nossos corpos parecem raios de sol mergulhados em barcos de esferovite com um motor de um carro de brincar, comprávamos pilhas com sabor a limão, e ele, e eu, e eu e ele e o barco de esferovite, perdidamente apaixonados como as águias nocturnas do chocolate amargo,

Os carris e os túneis, que têm?

Um dia, a escuridão transformar-se-á em lençóis de prata com almofadas de oiro, E os carris? pergunta ele, que têm? Respondo-lhe eu, Nada... Responde-nos os barco de esferovite com o velho motor do carrinho de brincar, as pilhas, sabiam a limão, amargo, o dia quando regressei e descobri que era um esqueleto de vidro com mãos de arame, pergunto-lhe

Lembras-te? Claro que sim, como me lembro do dia quando disfarçada de água da chuva entraste em mim, numa tarde de Agosto, tinhas livros numa das mãos ínfimas, pequenas, como os rochedos das praias imaginárias da nossa infância, e claro que

Não me recordo dos vidros partidos no recreio da escola,

Amanhã, amanhã, amanhã terça-feira de Março de 2015, um dia, quem sabe, todos os poemas vestidos de arame-farpado, em redor de um campo de minas como os seios camuflados dos grandes edifícios que se escondem nas cidades e dão abrigo aos sem-abrigo, todos, amanhã, quem sabe um dia destes, no calendário virtual do meu portátil, eu, eu encontre os restos de saliva que sobejaram das palavras mordidas pela serpente do envenenado homem das luzes de linho, cansei-me, cansei-me dos calendários de papel com números complexos, matrizes, equações diferenciais loucas de amor por integrais triplas, e no entanto, ninguém, ninguém à espera delas na cama nua das quadriculas de insónia,

Calçavas uns sapatos rabugentos, ouvia-os enquanto descias o passeio que aproveitavas para observares distraidamente os manequins nus, esqueléticos, das montras com roupas adormecidas pelos candeeiros da noite embaciada pelo perfume das rosas junto à cabine telefónica, de vidro, alumínio, e palavras que desconhecíamos, e não sabíamos que dias depois

Os carris e os túneis, que têm?

Debaixo do braço transportavas um livro de Érico Veríssimo “Clarissa”, a chave de acesso ao teu cofre, eu, hoje, hoje talvez não, amanhã, amanhã sim, eu já o tinha lido, e confesso que enquanto conversávamos sobre o livro íamos caminhando em direcção ao tempo-espaço de Einstein, e hoje percebo, amanhã, amanhã talvez, terça-feira de Março de 2015, o murmúrio das imagens a preto e branco do álbum de fotografias do Pai Fernando, Angola está lá, como estão os carris onde ontem passeavam comboios para Mirandela, e hoje, hoje apenas linhas curvas, rectas, círculos de lágrimas das rochas metamórficas com sombras de pedra, ele acompanhava a linha de bicicleta pela mão, chegava ao Tua, e subias as curvas inclinadas com sabor a saudade, apenas, apenas para dar um beijo à mãe, fiquem todas, hoje não, hoje

Os carris e os túneis da saudade dentro de um álbum de fotografias,

Como ficaram as tuas palavras dentro de mim, todas, elas, disfarçadas de chuva de Agosto em final de tarde.

 

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 20:33

16
Ago 12

Uma mulher de vidro poisou nas minhas palavras

sobre a secretária de madeira

invento-lhe história com fotografias a preto e branco

que trouxe de Angola

os barcos ainda vivem

e navegam entre paredes de limão

e o fumo dos cachimbos ensonados junto aos livros desassossegados

uma mulher

 

no meu álbum de fotografias

uma mulher que hoje é uma menina

e ontem

e ontem galopava no cavalo branco com sílabas de cetim

 

perdi-lhes o nome

olho-as e quase desconheço os lugares

e os cheiros

e todos os nomes do caderno preto

 

vejo o mar

e o mar parece um amontado de ruínas de cimento

vejo as árvores

e todas as árvores mortas nas janelas dos pássaros sem cabeça

perdidos no meu álbum de fotografias

vejo o mar

e todos os barcos são pedaços de madeira

dentro dos dias ensanguentados de insónia

e princípios de solidão

os calafrios da morte

a preto e branco

nas equações do amor...

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:48

01
Ago 12

Não são reais as fotografias onde habito

e percebi que eu pertenço a um álbum

onde apenas o meu rosto abre-se aos silêncios

dos olhos camuflados do nitrogénio

 

percebi quando folheio as páginas emagrecidas dos aniversários em tristeza

que aquele miúdo com ar aparvalhado

deitado num carrinho de bebé

não sou eu

(ranhoso sem cabelo e chorão)

não sou eu

que cresci dentro de um álbum completamente só

 

(Não são reais as fotografias onde habito

e percebi que eu pertenço a um álbum

onde apenas o meu rosto abre-se aos silêncios

dos olhos camuflados do nitrogénio)

 

completamente só penso eu

porque nunca me lembro de dar a mão a quem quer que seja

ou

ou simplesmente a afagar o cabelo de uma árvore em silêncio

 

e acorda a noite

e a noite me afaga o cabelo

e a noite me ouve

e a noite me deseja

entre palavras cigarros e garrafas de vodka

e o papel de parede da insónia

nunca me esquece

e antes de eu adormecer

dá-me um beijo simplesmente no rosto que nunca foi meu

e vive

e vive dentro de um álbum de fotografias

com alguns pedacinhos de cola

 

e percebo que o mar

o mar e percebo

e percebo que nunca existiu o mar

e que eu não sou aquele ranhoso

raquítico

chorão

tinhoso

na fotografia com um crucifixo ao peito...

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:14

30
Mai 11

Oxalá aconteça algo de bom nas nossas vidas, sim e eu consiga vencer esta batalha, sim, oxalá que do sol venha até nós o movimento pendular dos nossos corpos, sim e eu me abrace nos teus lábios enquanto passeamos junto ao mar, e eu me abrace na tua boca enquanto a neblina se alicerça nas tuas coxas.

 

- Sim oxalá

 

Olha-se ao espelho, e dele os tentáculos da manhã poisam nas suas mãos camufladas pelo cacimbo, os alfinetes que seguram o vestido dela dormem profundamente e no espelho sente-se a fome transmitida pela imagem de um magricelas, o papel de parede extingue-se no candeeiro do quarto, o vestido dela, o vestido dela suspenso nas lágrimas de uma criança esquecida no recreio da escola, os nossos corpos encostam-se, nos nossos corpos milímetros quadrados de desejo avançam em direcção ao ascensor, ele divide-se em três e ela, ela mistura-se com a saliva quando na parede da sala o relógio em mentiras desacreditadas escreve sílabas desajeitadas, palavras que quase não se lêem, sombras que abrem a boca para prenunciar vagarosamente que são cinco horas da tarde.

 

- Oxalá aconteça algo de bom nas nossas vidas, procuro no álbum de fotografias e apenas encontro um miúdo de dentes arreganhados, pulseiras nos braços e anéis nos dedos, um crucifixo em gargalhadas junto ao peito, uma menina segura-lhe o braço, e a menina com o tempo perdeu-se, a menina aos poucos engolida pelos musseques, sim e eu consiga vencer esta batalha,

 

Ele soldado, ele de fato e gravata, ele sentado numa cadeira de praia, e oxalá amanhã a praia entre pela janela do meu quarto, ele e ela constroem castelos de areia nos lençóis e quando o guarda-fato os olha, ela em sorrisos ela abanando os bracinhos, ela em pequeníssimas dentadas no pescoço dele,

 

- Sim oxalá.

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

30 de Maio de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:16

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