Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

04
Fev 14

foto de: A&M ART and Photos

 

Sentes o vento nos finos tapetes de solidão, e cansas-te, e murmuras...,

e murmuras os ínfimos castigos da cidade em construção,

tens medo dos holofotes que a madrugada desenha na tua vidraça, choras?

das gravuras que deixaram no teu olhar sinto a voz do silêncio,

observo as árvores que balançam, e quebram...

choras?

sentes o vento nas acácias manhãs de Inverno,

tempestuosas,

tormentosas...

como as mentiras dos carrinhos de choque na feira da alegria,

há sempre uma palavra no teu sorriso,

há sempre um sorriso meu... nas palavras tuas,

 

Sentes, choras, sentes os orifícios das conchas perdidas,

ouves o mar, e sabes que dentro dele eu, eu... eu brinco nas invisíveis ondas de espuma,

desço às profundas mágoas que a tempestade transporta,

há uma porta de entrada vazia, chorosa... ranhosa..., uma porta com dentes de carvão,

sentes e choras, e brincamos como crianças nas tristes ardósias junto ao rio,

há socalcos dentro de socalcos,

há ruas perdidas dentro da tua algibeira...

sentes o vento nos finos tapetes de solidão, e sabes, e sabes que hoje tive uma bandeira na minha mão,

cresceu uma flor no meu cabelo,

e diz-me o espelho nocturno dos milagres incompreendidos que... que amanhã...

que amanhã não choras, que amanhã não sentes,

que amanhã melhoras.

 

 

@Francisco Luís Fontinha – Alijó

Terça-feira, 4 de Janeiro de 2014

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:15

03
Jan 14

foto de: A&M ART and Photos

 

Prefiro esquecer

não olhar o mar sobre as pedras cinzentas da dor...

não chorar porque nas lágrimas habitam os pássaros em papel

como palavras vivas

como... prefiro esquecer o sofrimento ensanguentado da noite

sentado

e adormecer

eu cansado... cansado de esperar que se ergam as flores do triste Inverno.

 

 

(não revisto)

@Francisco Luís Fontinha – Alijó

Sexta-feira, 3 de Janeiro de 2014

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:30

29
Dez 13

foto de: A&M ART and Photos

 

Não tínhamos sabão para lavarmos os pecados cometidos durante a noite, da torneira do lavatório, um objecto quase em putrefacção devido ao estado de abandono a que foi submetido durante os últimos anos de permanência do habitante caquéctico a que dizem ser meu tio, apenas um fino fio de ferrugem, abria-a, fechava-a, e na esperança que de pequeno fio se transformasse em grande novelo..., mas... nada, sempre pingos de ferrugem, e mais nada,

Vida desgraçada, dizem alguns de vocês,

Vida alegre e de felicidade, acho-o eu, porque feliz feliz é aquele que não sabe o que diz, como eu, e voltando ao sabão, em falta dele temos sempre a fé para nos redimirmos, e claro, começamos a rezar, rezamos tanto que quando terminamos... tinham passado quase trinta e cinco dias, sem comer, sem beber, sem beijos, sem abraços... apenas rezávamos e de vez em quando...

Vida desgraçada, dizem alguns de vocês,

Olhávamos a torre da velha Igreja e sentíamos o vento baloiçar nos corpos nossos caídos no soalho da solidão, dizias-me que

Amanhã tudo será melhor,

E hoje, que é o teu amanhã, não tudo melhor, mas... da torneira do lavatório apenas um pequeno fio de ferrugem e sabão, não sabão para lavarmos os pecados cometidos durante a última noite, perguntei à ferrugem se sabia quando tínhamos água

Que

Não o sei, nada percebo disso e apenas respondo ao senhor seu tio, e eu respondia-lhe que

O senhor meu tio foi-se, esfumou-se... voou enquanto dormíamos... como dois lençóis embebidos em sémen e gemidos roucos dos cigarros acabados de fumar,

Que, ainda fumas?

Que

Não o sei, não o sei..., Amanhã tudo será melhor, Amanhã tudo será melhor, Amanhã tudo será melhor, Amanhã tudo será melhor, Amanhã tudo será melhor, Amanhã tudo será melhor, Amanhã tudo será melhor, Amanhã tudo será melhor... que

Não, deixei de fumar e pecar,

Não preciso de sabão, não preciso da água do lavatório nem dos lençóis embebidos em sémen e velhos gemidos, o senhor meu tio?

Foi-se,

Que..., que bicho mordeu ao seu namorado?

Saudades, apenas,

Ciumes?

Da

Da vida desgraçada, dizem alguns de vocês, ou...

Ou da noite em que tínhamos a certeza que nunca mais terminaria, perguntei à ferrugem, sentei-me na sanita e pasmei-me em perceber que dentro de nossa casa habitava uma comandita de trombudos deambulantes clandestinos pássaros que nos habituamos a apelidar de ferrugem e de ferrugem

O quê?

E de ferrugem nada tinham, sempre asseados, sempre penteados, sempre..., APRUMADOS,

Não tínhamos nada, parecíamos dois voyagers em busca dos caminhos perdidos, perguntava-lhe se ainda se recordava da tarde quando caiu sobre nós uma gaivota encharcada e com pequenos pedaços de

Ferrugem?

Lama, madeira da Índia e tílias falidas depois da tempestade lhes derrubar todo o telhado em zinco, a palhota a descoberto destruiu os poucos tarecos que sobraram do regresso a casa, e num caixote semelhante a uma pequena caixa de sapatos conseguíamos meter o que tínhamos de tão pouco o ser...

Algumas da cabras deixámos-las no pasto, lá ficaram, por lá ainda devem andar, quantos às vacas, essas, já devem ter morrido, passou tanto tempo meu querido filho

Tempo demais mãe, tempo é muito e às vezes é tão pouco,

A não ser que alguém nos empreste uma barra de sabão e um alguidar com água limpa, talvez a vizinha do quarto esquerdo

Essa não, essa não... tem a mania que é rica... todo cheia de coisas, não, essa não,

Então esperamos pelo regresso do barco que à quase quarenta e dois anos ficou de vir, e ainda não veio, e quem nos garante que ainda exista?

Ninguém, ninguém...

Tempo demais mãe, tempo é muito e às vezes é tão pouco, não tínhamos sabão para lavarmos os pecados cometidos durante a noite, da torneira do lavatório, um objecto quase em putrefacção devido ao estado de abandono a que foi submetido durante os últimos anos de permanência do,

Do VELHO?

Do minguante espelho com lábios rosados e seios de neblina, hoje sabemos que tudo foi uma mentira, mas ontem

Amanhã tudo melhor, meu filho, tudo melhor...

E não melhor, e não melhor, porque a ferrugem nunca cessou de crescer em nós, porque o lavatório ainda hoje chora as lágrimas negras das noites frias de Inverno, porque

Do VELHO?

Porque o VELHO... o VELHO era em aço laminado... a quente, a quente.

 

 

(não revisto – ficção)

@Francisco Luís Fontinha – Alijó

Domingo, 29 de Dezembro de 2013

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:18

25
Dez 13

foto de: A&M ART and Photos

 

A colegial sem nome que esconde os lábios na madrugada

o livro da colegial dorme como uma criança cansada

o cansaço inventa sorrisos nas mãos do desejo

e este

às vezes como um poço sem fundo

também como a colegial

sem nome

voa sobre as praças com candeeiros de prata,

 

Os lábios foram-me oferecidos pela madrugada

e a noite constrói-se nas lágrimas da chuva

dos orgasmos fingidos

que a colegial também esconde

não na madrugada

não no corredor da morte...

mas... mas esconde-os na alma do Diabo

como pétalas de insecto mergulhadas nas manhãs de Inverno,

 

A colegial é transparente

é imóvel

saboreia-se nas candeias que o destino lhe roubou

ela desconhece que a lareira existe apenas para a aquecer

despe-se para o espelho...

a colegial sem nome diz que quando for grande quer ser uma fotografia a preto-e-branco

perplexa

descobre o veneno dos zincos telhados que acordam a criança cansada...

 

 

(não revisto)

@Francisco Luís Fontinha – Alijó

Quarta-feira, 25 de Dezembro de 2013

publicado por Francisco Luís Fontinha às 20:37

30
Out 13

foto de: A&M ART and Photos

 

não precisaria da noite para reescrever-te e reinventar-te das neblinas marés do inferno

não precisaria de ver-te

acariciar-te

tocar-te como o faço sempre que te observo nas sombras dos cansados telhados de suor

não precisaria

mas também não fazia sentido sentir-te

sentindo-me agachado junto aos rochedos da miséria

indefinidamente

sem pontuação

nem um simples ponto final... e despedir-me

de ti

 

(sem precisar

não precisaria de despedir-me das pegadas em flor

ou

dos candeeiros verdes das janelas em plátanos solitários)

 

não precisaria de imaginar-me nas ravinas doentes das montanhas com reumatismo

obesas caminhando abraçadas aos três carris que o Inverno tece nas mãos da geada

não precisaria

e preciso

olhar-te

imaginar-te deitada no meu desajeitado colo

porque os meus joelhos parecem dobradiças enferrujadas

barcos encalhados nos finíssimos bancos de jardim

à madeira empobrecida

no caruncho bicho das palavras derretidas nos talheres do açúcar em pedra...

o mar alimenta-me a saudade

de precisar quando eu não precisaria... dos teus beijos amanhecer

 

 

(não revisto)

@Francisco Luís Fontinha – Alijó

quarta-feira, 30 de Outubro de 2013

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:35

02
Jul 13

foto: A&M ART and Photos

 

Vivíamos não percebendo que das marés de Inverno

habitava em nós o tédio

construíam-se-nos alicerces envenenados por doces lábios de incenso

como Primaveras desenhadas num papel esquecido em ti

eu

de esquadro e régua

tu

deitada sobre o estirador do desejo

delineava-te em curvas com sombras de trapézios

e dos poucos ângulos que sobejavam em ti

davam para alimentar-me quando chovia nos lençóis da espuma infância

e sorrias como os milímetros de noite inertes entre pilares de granito e luzes ancoradas pelo suicídio,

 

Vou deixar de escrever

(confesso-o apenas a ti)

porque tudo tenho perdido com as palavras

hoje

(confesso-o apenas a ti)

olhei-me no espelho do meu guarda-fato (que te garanto, nada guarda)

e vi os meu olhos em pedaços de lume

como a lareira de Carvalhais

(lembras-te do Inverno?),

 

Sorrir para quê?

Se todas as minhas fotografias são tristes

inexpressivas e doentes

até parecem (disseram-me um dia)

cadáveres voando sobre os Oceanos onde mergulhavas em busca de cardumes inexistentes

de peixes

e lobos descendo a Serra

aldeias perdidas em ti

como eu

(disseram-me um dia, que as madrugadas não eram todas iguais)

apelidei-te de PARVALHONA e hoje percebo que errei

(peço-te desculpa)

porque nenhuma madrugada consegue ser decalcada no estirador onde habitas

digamos que (onde ainda consigo ver o teu corpo no esquisso),

 

Abro a janela

(para quase todos eles, já é noite)

para mim (para mim acorda agora o dia)

começam as brincadeiras dos meninos enquanto mães desassossegadas

habitam como tu no estirador semi-nu das estrelas de plátano adormecido,

 

(confesso-o apenas a ti, tenho fome)

fome daquela que estávamos habituados a saciar

coisa que conseguíamos resolver com dois ou três livros

alguns beijos

e corações com o marcador encarnado

deixando no teu peito uma rosa

um silêncio

sem queixumes

saudades

ou pieguices...

abro a janela

e deixaste de descer a Serra

como os lobos

(quando ouviam a velha máquina de costura Singer),

 

Hoje

Que dia é hoje, (se posso apelidar-te de amor)?

Não sabes ou não queres responder...

deixei de perceber se é Sábado

Terça-feira

não o sei porque não o desejo saber

(Vivíamos não percebendo que das marés de Inverno

habitava em nós o tédio

construíam-se-nos alicerces envenenados por doces lábios de incenso

como Primaveras desenhadas num papel esquecido em ti

eu

de esquadro e régua

tu

deitada sobre o estirador do desejo)

porque se o soubesse

perceberia o quanto feliz eu era sem as malditas palavras...

 

(não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:45

15
Jun 13

foto: A&M ART and Photos

 

Um, depois dizes-me que adormeço enquanto ficas sentada a olhar-me, porque sabes que eu detesto que me olhem, porque eu detesto que se comportem comigo como se eu fosse uma estátua sobreposta entre a luz e multidão, entre homens e mulheres, em delírio, revoltos os cabelos semeados na planície obscura da sangrenta sinfonia em palavras ainda não escritas,

Gostas de mim?

Talvez, e um dia acordamos, e a noite deixa de padecer aos movimentos corporais das amendoeiras em flor, a cerejeira do quintal sem os significativos sinais vitais, deixamos de a ouvir durante a noite, e de queixume em queixume, optou pelo silêncio,

Não sei!

Gostas? Gostas... vá lá, diz-me?

Não sei o que são janelas quando aprendi em miúdo que das janelas só vinham bichos, ou serviam, nem sempre, para imaginarmos o mar pintado nos vidros, alguns deles, quebrados, outros, já tinham partido para longínquos lugares, apenas resistiram as escadas em granito, e todo o resto, morreu, a porte de entrada, sucumbiu numa noite de Inverno, cessou a respiração e daí em diante ficou entreaberta, nunca mais ficou de boa saúde e a fechadura em recusa pelas drageia receitadas pelo senhor Armindo, aos poucos... trocá-mo-la por um cordel que de baixo custo tinha tudo e de nada no servia gritarmos contra as paredes do compartimento dividido por meia dúzia de metros quadrados de chita, de uma lado ficava a sala de jantar, e do outro

Não sei...

E

Do outro

Gostas?

O meu quarto, com uma porta meio envidraçada, meio esburacada, com vista insuflável como os pneumáticos dos roncos automóveis quando regressava a gripe, quando eu ia à varanda, e nada, nem sombras rompiam pelas árvores que eu imaginava existirem, e que nunca passaram da minha imaginação, e do outro, do outro, um pequena torradeira servia-nos de aquecedor, e o Janeiro foi tão frio que quando acordei pela manhã, as escadas de granito eram lâminas de gelo, o o céu aprecia cinzento, e não nuvens hoje pela manhã, e aos poucos, descobri que até novas ordens estava acorrentado ficticiamente a uma mesa e a quatro cadeira, velhas, tão velhas que ouvíamos o caruncho mergulhar aos peixes do chafariz também ele, congelado, também ele, como eu, acorrentado, ficticiamente...

Não, não sei se gosto de persianas, também eu, ficticiamente existente, chorando, rindo, vomitando alimentos que não me recordo de os ter algum dia ingerido, tudo, e apenas, milagres da vida, da fé, e da alegria de viver numa casa acabada de morrer, e desde a morte da cerejeira, não sei

Talvez!

Penso que nunca mais comi cerejas, e hoje, sei que elas existem, porque oiço da tua bocas soníferos sons saboreando pratos vazios que imaginas estarem cobertos de coloridas encarnadas cerejas de papel, e sim, talvez não, sei lá..., os significativos sinais vitais, deixamos de a ouvir durante a noite, e de queixume em queixume, optou pelo silêncio, porque falar muito provoca hemorróides como depois viemos a confirmar, quando eles se levantaram da cadeira almofadada, com rodinhas, e meu Deus... o cheiro intenso a madeira de putrefacto cadáver de lata; e há pessoas com uma tal lata..., mas que lata, das grandes.

 

(não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:22

22
Jan 13

E se um dia eu te oferecer flores?

Dir-te-ei que enlouqueceste como enlouquecem as serras depois das tempestades de neve, assim, ficar-me-ás nas entranhas mãos que o perfume dos silêncios mares deixam ficar nas pálpebras tristes dos corpos imperfeitos das cidades vazias, dir-te-ia apenas que o amor é uma coisa, fria, compacta, estranhamente estranha, infeliz, as palavras sobre a aldeia onde nasci, vazia

E se um dia eu te oferecer flores? Provavelmente não será amor, acredito que seja o meu velório, e possivelmente não o será, provavelmente seja um casamento, o teu baptizado, talvez, um dia, percebas os meus poemas que escrevi, e deixei

De escrever?

Sobre a aldeia vazia, perdidamente entre duas distâncias, um ponto insignificante algures no Rossio, ou uma recta paralela ao rio tal como os carris que te levavam para Belém, ou talvez

O que me dizes das flores?

De escrever, ou talvez sobeja um ponto final para colocar no paragrafo em suspenso, à espera que regresses do outro lado da circunferência amarela, os círculos de luz, abelhas envenenadas pelas garras ciumentas da tua boca carnívora, enfeitada com cigarros de enrolar e pedacinhos de pétalas de papel,

Ou talvez

De escrever, desesperar até que a morte nos separe, acredites, não acredites, eu vou partir, oiro, marfim, ou talvez, dir-te-ei que enlouqueceste como enlouquecem as serras depois das tempestades de neve, assim, ficar-me-ás nas entranhas mãos que o perfume dos silêncios mares deixam ficar nas pálpebras tristes dos corpos imperfeitos das cidades vazias, dir-te-ia apenas que o amor é uma coisa, fria, compacta, estranhamente estranha, infeliz,

Ou

Dir-te-ia que os telhados são como as flores que tenciono oferecer-te, ou talvez não, ou

Infeliz,

Ou

Dir-te-ia que os telegramas (telegramas?) dir-te-ia que os telhados de papel sobre a aldeia onde nascia arderam, tal como as flores, tal como os poemas do Inverno de écharpe na cabeça à lareira da sonolência à espera que o livro poisado na mão acordasse e se transformasse em simples criança desenhando sonhos nas paredes escuras, nas paredes frias, dos vidros que guardam as janelas

Do amor

Ou,

E se um dia eu te oferecer flores?

Dir-te-ei que enlouqueceste como enlouquecem as serras depois das tempestades de neve, dos vidros que guardam as janelas das palavras que morreram e não servem para os poemas de amor,

Porque

Ou

Do amor,

Nem todas as palavras servem...

 

 

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

Alijó

 

publicado por Francisco Luís Fontinha às 20:28

14
Jan 13

As gélidas escadas de sal dormiam abraçadas aos suspiros da fonte da Gricha e eu achava normal não existirem pássaros durante os sonos nocturnos que passava à janela a contabilizar os automóveis friorentos que desciam a calçada de luz dos candeeiros enferrujados que iluminavam os vultos esquisitos, os vultos de pedra, simples moças a entrarem em casa de madrugada, congelados os tentáculos de cobre que reluziam e brilhavam debaixo das estrelas de cetim, a nossa casa não tinha vidros, alguns estavam vivos, outros, outros já tinham partido para outros destinos, e a porta de entrada ficava encerrada durante a noite apenas com um cordel que pela parte de dentro era unido por dois pregos, também eles, velhos

Eu

Eu achava normal os vidros das janelas estarem estilhaçados, alguns estavam vivos, outros, outros já tinham partido para outros destinos, outros já tinham fugido para outras direcções, como quem entra na cidade e perante a placa com a inscrição “outras direcções” ele fica sem saber como chegar ao segundo andar porque as velhas, porque as escadas em madeira terminaram a validade, rangem, têm cãibras nas pernas suspensas nos pinos de aço como o reumatismo felizardo que cintilavam nas paredes de gesso com rugas de vidro, pinos de aço, ele fica sem saber o que fazer

Eu também,

Outros já tinham partido para outros destinos, e a porta de entrada ficava encerrada durante a noite apenas com um cordel que pela parte de dentro era unido por dois pregos, também eles, velhos, também eles, caducos, também

Não tínhamos água e só, eu só, e só da velha Gricha jorrava a glicerina fresca com o diabo no rabo ao ditado corrigido pela senhora professora com a bata branca e a menina dos três olhinhos poisada na secretária, olhava-nos, sorria-nos, gostava de nós a gaja

Também eu,

Também eu gostava da gaja que subia a calçada de madrugada, e juro, não era senhora casada nem a menina dos três olhinhos, mas tinha um corpo esculpido num pedaço de granito que eu tentei copiar e desenhar na parede da sala, não, na parede do quarto, não, na parede da cozinha, não

Só tínhamos um compartimento amplo, enorme, com bolinhas coloridos ao bolor que descaiam do tecto como se fossem dois mamilos acabados de nascer, e balões, e serpentinas, e perguntavam-me

Vivem num circo? Respondia-lhes que não, Não vivo num circo, mas a nossa vida é um espectáculo colorido, tínhamos uma casa com muitas janelas e poucos vidros, tínhamos uma sanita velhíssima que quase sempre estava com gripe e tínhamos que a levar às urgências do hospital, no tempo que ainda havia

Hospital?

Urgências nocturnas? E eu achava normal não existirem pássaros durante os sonos nocturnos que passava à janela a contabilizar os automóveis friorentos que desciam a calçada de luz dos candeeiros enferrujados que iluminavam os vultos esquisitos, os vultos de pedra cinzenta, no tempo que ainda havia

Gajas vestidas de sanita, sentava-me e adormecia, e sonhava com papagaios de papel,

As gélidas escadas de sal dormiam abraçadas aos suspiros da fonte da Gricha e eu achava normal não existirem pássaros durante os sonos nocturnos, nem clarabóias, nem chaminés com acesso ao céu, passava horas à janela, desenhava dentro da cabeça imagens a preto e branco que só as fotografias sabiam explicar, que só só da velha Gricha jorrava a glicerina fresca com o diabo no rabo ao ditado corrigido pela senhora professora com a bata branca e a menina dos três olhinhos poisada na secretária, olhava-nos, sorria-nos, gostava de nós a gaja, que muitas vezes me aqueceram as mãos de água-fresca como pasteis de feijão ou natas com sabor a Sábados à tarde, como eu

Nunca percebi as mulheres suspensas nos calendários do barbeiro,

Como eu

Nunca percebi as mulheres suspensas nos calendários do sapateiro,

Como eu

Nunca percebi as gélidas escadas de sal que dormiam abraçadas aos suspiros da fonte da Gricha e achava normal não existirem pássaros durante os sonos nocturnos quando se esqueciam de mim à janela a contabilizar os automóveis friorentos que desciam a calçada de luz dos candeeiros enferrujados que iluminavam os vultos esquisitos, os vultos de pedra, simples moças a entrarem em casa de madrugada, congelados os tentáculos de cobre que reluziam e brilhavam debaixo das estrelas de cetim, a nossa casa não tinha vidros, alguns estavam vivos, outros, outros já tinham partido para outros destinos, e a porta de entrada ficava encerrada durante a noite apenas com um cordel que pela parte de dentro era unido por dois pregos, também eles, velhos

Eu só

Eu acreditava que as meninas dos calendários do barbeiro, eu

Eu só

Eu acreditava que as meninas dos calendários do sapateiro, eu

Acreditava

Que eram anjos que voavam dentro dos cubos de madeira que as tempestades de areia, depois de cair a tarde sobre nós, deixavam cair como se fosse abelhas quando procuram o pólen nas flores loucas, nas flores íngreme, ou nas gajas nocturnas com braços de plástico, acreditava

Nos anjos da fonte da Gricha

Eu só.



(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

Alijó

14/01/2013

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:51

11
Jan 13

Percebia-se pelas pálpebras dele, azuis com sabor a pedacinhos de inocência, que a chuva trazia na algibeira a digestão fictícia dos carrinhos de choque que da infância deixaram estacionados junto ao berço de madeira prensada, calculava pelo peso da noite que não eram mais do que três magras horas da madrugada, chorava, não dormia, e sentia-se que dentro dele viviam parafusos de aço com defeito de fabrico, a garantia tinha cessado, as torres tinham acabado de cair entre os imensos plátanos virgens e os outros, quaisquer, barcos envelhecidos, doidos varridos, deitados sobre as tábuas da ignorância, dele, e eras uma criança. doida às vezes, dócil também, poucas, nenhumas, quaisquer

Vivia-se no fio metálico da navalha e ele tinha medo dos cobertores com remendos de chapa que a mãe, mecânica, tinha feito para que pudessem dormir e nada deles saísse durante a noite, atravessasse os buracos do velho tecido, e pelos partidos vidros das janelas fossem aterrar no paralelepípedo da rua com costas de geada, os braços murchavam, e derretiam-se como a manteiga sólida que o inverno pintava como se fossem pedaços de pedra, e quando lhe perguntavam

Gostas de cá andar, e ele com rosto de incenso respondia quase sempre Às vezes, depende, e nunca percebi o que queria ele dizer com Às vezes, depende

Acordava o dia, retiravam-lhe a fralda de pano encharcada numa espessa massa amarelada intensamente com um cheiro horrível, indesejado, que aos poucos ia ocupando cada milímetro quadrado da casa de Lisboa, um enfadado rés-do-chão meio podre, meio enraizado no Outono pássaros de luz que vinham do outro lado do rio, entravam em casa, sentavam-se na mesa da cozinha, e da janela

(Tanta coisa para dizer que cheirava a “merda”)

E da janela sentiam-se os motores com cavalos cinzentos em lábios de fumo, ouvia-se o rosnar da fera amansada criança deitada no sofá à espera que lhe trocassem a fralda de pano por outra fralda de pano, limpa, lavada, e o motor aos tropeções avançava mar adentro até desaparecer nas velhas cristas das ondas de espuma que os cigarros embebidos em cerveja emagreciam como tremoços numa esplanada de Belém, sexta-feira, e nada de novo, foi-se e não regressou mais

Às tuas, Às minhas, Às nossas,

E não regressou mais,

Chegava ao balcão e pedia incessante e audaz ao empregado “Destroque-me” esta nota para tirar cigarros, e ela

Não se diz “Destroque-me”, tá ver Francisco, isso não existe, correctamente é Troque-me esta nota para tirar cigarros, e eu acreditava mesmo que os ossos de pano que às vezes me embrulhavam tinham saído de validade há tempo suficiente, só podia, não encontrava outra explicação para o tão grande aglomerado de homens e mulheres à porta de minha casa, gritando

(Tanta coisa para dizer que cheirava a “merda”)

Às tuas, Às minhas, Às nossas,

E não regressou mais,

Um enfadado rés-do-chão meio podre, meio enraizado no Outono pássaros de luz que vinham do outro lado do rio, entravam em casa, sentavam-se na mesa da cozinha, e da janela, da janela vinha-nos o medo das coisas como as simples flores encarnadas com lacinhos de cetim que eu nunca soube como se chamavam e tu, quando eu chegava a casa, simplesmente deitavas no caixote do lixo e dizias em voz alta para que eu ouvisse e não esquecesse nunca

Não quero mais esta porcaria, odeio flores encarnadas com lacinhos de cetim,

E eu,

E ela,

Olhavam-me depois de trocarem-me a fralda de pano, abria a boca e sorria, sorria quando sabia que da janela vinham as imagens tricolores com pequenos fios de prata, sorria porque tinha acabado de beber o saborosíssimo e inconfundível leite materno, sorria porque

Vivia-se no fio metálico da navalha e ele tinha medo dos cobertores com remendos de chapa que a mãe, mecânica, tinha feito para que pudessem dormir e nada deles saísse durante a noite, atravessasse os buracos do velho tecido, e pelos partidos vidros das janelas fossem aterrar no paralelepípedo da rua com costas de geada, os braços murchavam, e derretiam-se como a manteiga sólida que o inverno pintava como se fossem pedaços de pedra,

Às tuas, Às minhas, Às nossas,

E não regressou mais,

(Tanta coisa para dizer que cheirava a “merda”)

E da janela sentiam-se os motores com cavalos cinzentos em lábios de fumo.

 

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:09

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