Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

27
Abr 16

Tenho um esqueleto amaldiçoado; sinto-o quando os ombros se cruzam na madrugada.

Tenho a certeza que amanhã serei capaz de voar sobre os sobreiros da tempestade,

Como um pássaro enlouquecido,

Como uma nuvem sem destino

Quando o poço da tristeza inventa desenhos na areia da insónia.

Pego nos cigarros amachucados pelo prazer,

Pego no livro estacionado sobre a minha secretária,

Que me espera, todas as noites, antes de adormecer.

E este madito esqueleto não se cansa de ranger,

Sei que todas as flores do meu jardim não me pertencem,

São alugadas, algumas, e outras, e outras emprestadas pela vizinha do terceiro direito,

Estão à minha guarda como uma criança entre círculos e palavras no recreio da escola,

Os vidros da inocência que parti com uma bola desenfreada,

As pedras que atirei aos vidros substituindo a bola desenfreada,

O silêncio da sebenta escondida na pasta,

A bata que trazia nunca regressava com todos os botões,

Os joelhos rasgados,

Os cotovelos ensanguentados…

Mas era feliz assim, como hoje sou feliz assim.

Com o esqueleto amaldiçoado,

Transparente verniz que cobre a minha pele,

Poema que deito no lixo porque não gosto dele,

Este ainda não o sei,

Talvez no final vá fazer companhia ao túmulo dos Deuses Sagrados,

Caderno pérfido, esferográfica mais parecendo uma enxada… e ao longe o Douro encurvado nas coxas da montanha,

Desprezo-me,

Não me apetece cortar o cabelo, não me apetece desfazer a barba…

Dizem que sou um vagabundo,

E sou-o.

Uma cidade esvairada, uma campânula nas festas de aldeia,

Tenho um esqueleto amaldiçoado, é pobre, é velho, e mesmo assim tenho de o transportar de aqui para ali e de ali para aqui,

Loucos,

Loucas,

A boca quando dos lábios brota a Primavera,

Quando o fogo incendeia o meu corpo e só o mar consegue sossegar-me deste esconderijo nojento, obsceno, ridículo,

Tenho noites assim, tenho noites desgovernadas pelas fotografias da minha infância,

E apenas sinto os barcos a passearem-se junto a mim,

O meu cão ladra,

Não me apetece cortar o cabelo e desfazer a barba…

Porque sou um vagabundo que tem um esqueleto amaldiçoado.

 

 

Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 27 de Abril de 2016

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:51

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