Tenho pena que os caminhos que ao alvorecer cruzávamos, hoje, estejam moribundos como as nuvens azul-cansado que sobre o peito nu da melancolia amanhecer desperta num relógio longínquo, abstracto com roldanas e rodas-dentadas, com uma boca fechada, como as janelas que dormem nos prédios desabitados, sem luzes, sem portas, nem crianças a brincar, tenho pena
Este vazio sincero que as pálpebras escuras da noite deixam ficar nas mãos de que a trabalha, a ela, a terra prometida, e dizia ele que a terra é de quem a trabalha, mas o dito fruto, mas o fruto pertence
A quem o colhe, nem mais, tenho pena das tuas sílabas suspensas nos teus lábios de areia branca, tenho pena das malditas luzes e das rodas-dentas esquecidas na mesinha-de-cabeceira, e à tardinha, dizia-te simplesmente
Vou-me
Desistir de caminhar nas pedras falsas das calçadas vulvas que todos os cadáveres deixam adormecer antes de morrerem, canso-me, despeço-me, demito-me, mas nada melhor do que deitar-me sobre um rio doente, e nada melhor do que levitar como os cavalos do velho cigano, ouviam-se os sons silenciosos das abelhas e das flautas de mel, e eles,
Subiam, desciam, e vias-me
E eles levitavam como pássaros negros antes de caírem os muros de madeira que os anjos de asas verdes construíram nas searas alheias, via-se a reforma agrária, e quando lhe perguntavam
Se tivesses duas casas davas uma? Ele respondia que sim, Dava sim senhor,
Se tivesses dois carros davas um? Ele respondia que sim, Dava sim senhor,
E se tivesses duas galinhas, davas uma? Ele furioso respondia que não, não dou, e quando lhe perguntava porque não dava uma das galinhas visto ele ter duas, simplesmente respondia
Porque só tenho duas...
Subiam, desciam, e vias-me
E vias-me partir de barco debaixo do braço, chapéu na cabeça, e com as sandálias na outra mão por causa da areia, não a reia dos teus lábios, mas a areia fina e fútil da praia, pousava as sandálias, despia-me e colocava a roupa sobre elas, estava nu, e quando tinha o barco em posição para a partida, entrava, sentava-me, sorria ao olhar os restos mortais que tinham sobejado de mim
As sandálias, os calções, e um ou outro parafuso que à partida eu achava que não seriam necessários, e se o fossem, paciência, depois de estar em alto mar, nada a fazer, nada, a não ser, mergulhar profundamente nos oleados maciços das marés aldrabadas pela voz de um solitário, coitadinho, coitados
Dos satélites vestidos de mulher às voltas de um planeta a que toda a gente apelidava de árvore fantasma, esqueleto vagabundo, sentinela sonâmbulo das noite embriagadas com óleo vegetal e sardinhas de conserva, Vou-me a ela
Coitadinho dos coitados plásticos da marmita onde os restos de comida serviam para alimentar um regimento inteiro, muitos, entre a Calçada e os Jardins junto ao rio, os automóveis estacionavam-se e abriam-se as portas de porcelana das bonecas das meninas
Vou-me a ela
A quem o colhe, nem mais, tenho pena das tuas sílabas suspensas nos teus lábios de areia branca, tenho pena das malditas luzes e das rodas-dentas esquecidas na mesinha-de-cabeceira, e à tardinha, dizia-te simplesmente que as meninas eram falsas, nunca existiram, e tal como as bonecas de porcelana e os automóveis de cerâmica, e tal como as meninas e os meninos da Calçada
Vou-me
Adormeciam como os fósforos cansados dos finais de tarde, quando entravas em casa de barco debaixo do braço e dizias-me
Olá amor, regressei,
E eu sabia que tu não regressavas, e eu sabia que continuavas em alto mar à procuras das coisas impossíveis,
Olá amor, regressei,
Atiravas os chinelos para debaixo do sofá, poisavas o barco em cima da mesinha da sala de visitas, despias a camisola e os calções, e mergulhavas nos lençóis de seda da nossa montanha de Primaveras nocturnas que o mar desenhava nas estrelas dos meus seios de papel mata-borrão, e eu via a caneta de tinta permanente em lágrimas azul-cansado que nas moribundas nuvens espetavam no peito nu da melancolia noite,
Olá amor, regressei
Às sandálias, aos calções, e um ou outro parafuso que à partida eu achava que não seriam necessários, e se o fossem, paciência, depois de estar em alto mar, nada a fazer, nada, a não ser, mergulhar profundamente nos oleados maciços das marés aldrabadas pela voz de um solitário, coitadinho, coitados
Amor
Olá regressei,
E eu sabia que tu não regressavas.
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó