Acordo.
De algodão a mão limpa-me o rosto, afaga-me os cabelos adormecidos, abro os olhos vagarosamente, e à minha frente de branco a imagem reflectida na parede, Deus?, Nossa Senhora?, enfermeira?,
Acordo.
De algodão a mão limpa-me o rosto, afaga-me os cabelos adormecidos, abro os olhos vagarosamente, e à minha frente de branco a imagem reflectida na parede, Deus?, Nossa Senhora?, enfermeira?, percebo que me encontro no nada, tubos, fios, aparelhos parecendo electrodomésticos observam-me como se eu fosse um estranho, inerte,
- A voz de silêncio que percorre o corredor na luz ténue da tarde, a mãe dele com um terço na mão?, a mão de algodão sorri-lhe, frente à janela as flores que jogam à macaca, quadrados impressos no cimento dos passeios, Deus salve o meu filho, o terço em rotação nas mãos magras e cansadas, o corpo inclinado a trinta graus, o verão poisa em pequeníssimos orgasmos fingidos, e o corredor começa a dilatar-se como uma veia no cansaço das picadinhas do pó rafeiro, muitas vezes gesso, o tecto em derrocadas amargas,
Obrigado meu Deus, ele acordou.
Estou vivo.
Não tenho pernas, eu vejo-as, vejo-as mergulhadas nos lençóis e disfarçadas de nuvens, mas não as sinto, com a ajuda de uma grua tento levantá-las, e parecem as dobradiças do portão do quintal de Luanda, perras, barulhentas, os móveis em movimento no apartamento em Lisboa, madrugada dentro, as minhas pernas acordam o prédio em descanso, homens e mulheres que ressonam, homens e mulheres enrolados nas acácias junto ao rio, e homens e mulheres vendendo prazer em filas de coxas nas velharias de Belém, sábado, o sol vem-se aos poucos e na minha pele a brancura das paredes da enfermaria, tenho fome,
- E ele quando menino agarrado às minhas pernas e soluçava com o cheiro do mar, procurava as lágrimas no céu, e os olhos verdes começavam a mergulhar na maré,
E se ele acordou, meu Deus, faz com que comece a andar.
A mão de algodão a atirar frases contra as paredes, como se sente, tem dores, lembra-se como veio para aqui, tente levantar as pernas, e o cheiro intenso a merda onde repousa o meu rabo um qualquer musseque em Luanda, a lama em gatafunhos entre os becos, e a sombras das palhotas emagrecem na chuva miudinha, levantar as pernas só com a grua do senhor Ernesto, e porque me olham os vizinhos,
- Já posso falar com ele?, e que não, e que precisam de dar-lhe banho, coisas simples da higiene, coisas tão simples, e eu apenas um beijo na testa,
Obrigado.
E lembro-me que andava no jardim a apanhar flores e uma sombra tombou sobre mim, só isso?, que eu me lembre, só…