As tintas agarradas à tela que nas sombras das águas furtadas a minha mão espalhava como se acariciasse a relva acordada em manhãs de primavera, ele escondia-se dentro do guarda-fatos e este sacudia-o em repentinos solavancos, e os solavancos em soluços à espera da chegada da noite.
Pássaros cansados suspensos nas tílias e das águas furtadas seminuas, apenas um divã, um guarda-fatos onde ele se escondia, e uma cadeira desencontrada no tempo, as telas, pincéis, tubos de tinta vazios e pouca coisa mais, e lixo. Ele um miserável e dias tinha que nem vinte cêntimos na algibeira, e as tintas aos berros,
- é por isso que ninguém se apaixona por este teso…
E os pincéis,
- miserável,
E dos tubos vazios nasciam silêncios e estes agarravam-se à tela, abraçavam-na e aos beijos olhavam as tílias, os pássaros suspensos, e os pássaros suspensos à espera de um carinho, um simples olhar, e passavam horas em sonhos irrealizáveis, sonhos,
- um dia vou ter umas águas furtadas não de brincar mas das outras, as de verdade, com muitas telas e tintas e pincéis e divãs e não guarda-fatos porque depois já nãp preciso de me esconder, e uma mulher que me ame e que me deixe pintá-la,
Sonhos,
Sonhos de pássaros suspensos em tílias, e ele já nem vinte cêntimos no bolso, metia a mão na algibeira, nada, conforme entrava assim saia, e a tela,
- tenho fome,
E os tubos vazios de tinta,
- um cigarrinho,
Um cigarrinho para matar a saudade de outros tempos, e fumo nada, apenas a claridade da rua, e cinquenta degraus, e umas águas furtadas de brincar, e o lixo pendurado junto à porta da entrada, e os pincéis,
- uma moedinha para o cafezinho,
Um cafezinho porque as tintas agarradas à tela que nas sombras das águas furtadas a minha mão espalhava como se acariciasse a relva acordada em manhãs de primavera, e a primavera ainda tão distante, e só amanhã, hoje não, hoje só chuva, só frio, só umas águas furtadas de brincar, e pássaros suspensos nas tílias com sonhos, e sonhos nada, nem vinte cêntimos na algibeira,
- miserável,
Miserável o guarda-fatos aos solavancos à espera dos soluços da noite…
(Texto de ficção)
Luís Fontinha
17 de Fevereiro de 2011