Depois, vi o sol desaparecer do cubículo de trapos onde nos escondíamos, depois, vi as nuvens transformarem-se em pedaços de papel, alguns com rugas no rosto, outros, de faces límpidas, absorvidos pela miudinha chuva que horas antes tinha começado a descer do tecto, viam-se os barrotes e as traves e o soalho dos vizinhos do andar superior, esquisitos, sonolentos, raramente saiam de casa, e quando saiam vestiam-se com folhas de árvores e não tinham cabelo, e não tinham pele, sim, tinham mas não era igual à nossa, pareciam-me
Escamas, pareciam peixes com pernas, peixes com braços, peixes com uma cabeça de xisto, grande, muito grande, peixes com mãos semelhantes a um alicate de corte, escamas, pareciam-me e não eram, montanhas vestidas com caixas de cartão que sobejaram das últimas compras em Paris, peixes
Pareciam-me
Sim, tinham mas não era igual à nossa, pareciam-me,
Tínhamos vizinhos no piso inferior, um casal sem filhos, quase nunca se ouviam, e quando acordava um som, era sempre o mesmo, igual, a todas as horas, a todos os minutos, a todos os segundos, pareciam-me
Gemidos,
Finos gemidos de orvalho sobre as superfícies transparentes do primeiro dia do ano, ontem, quase não se ouviram
Gemidos,
Flores, finos, gemidos? Não se ouviram, ontem, silenciosamente sós dentro do cubículo de trapos onde se escondiam, dormiam, um casal sem filhos, e quase nunca se ouviam sons, palavras, nada, muito, flores, finos gemidos, os lados de um triângulo equilátero, burros, burras, elas, as gaivotas do primeiro dia do ano, e
Quando lhe perguntavam a quantos graus ferve um ângulo recto, ela respondia A noventa graus senhora professora, e
Gemidos,
Finos gemidos, burros, e burras,
Asnos, asnas, metálicas, treliças, treliças isostáticas, e muitas, muitas
Flores, gemidos, finos burros, e burras, depois, vi o sol desaparecer do cubículo de trapos onde nos escondíamos, depois, vi as nuvens transformarem-se em pedaços de papel, alguns com rugas no rosto, outros, de faces límpidas, absorvidos pela miudinha chuva
Pareciam-me
Sim, tinham mas não era igual à nossa, pareciam-me, peixes com olhos verdes, peixes de cebolada, peixes de escabeche, peixes, peixes, e
Peixes,
Desciam, e subiam, as escadas, sobre nós, esquisitos, com pele não igual à nossa, diferente, com a pele igual a
Peixes,
Asnos, asnas, metálicas, treliças, treliças isostáticas, e muitas, muitas mãos com sabor a amêndoa torrada, regressava o chocolate, regressavas com os miúdos, subias, descias, as finas
Escadas
Gemidos,
As finas vozes que mal se ouviam, ele, ela, os dois pareciam um telhado sem telhas, ele, ela, os dois pareciam uma árvore sem ramos, uma árvore sem folhas, um comboio
Fantasma entre os socalcos do Douro,
Obrigado pela recordação, gemidos, ele, ela, os dois pareciam a avenida Almirante Reis em discussões incompletas, ele, ela, os dois pareciam
Eu levo trinta, ai filho, eu faço por menos,
E subiam as escadas, desciam, escondíamos-nos dentro dos travesseiros da insónia, peixes, quase sempre, peixes com braços, quase sempre, peixes com pernas, quase sempre
Gemidos,
Peixes,
Quase sempre
Eu faço por menos carinho, Sim Sim, Você me ama amor?
Peixes, quase sempre, com braços, quase sempre, com pernas, quase sempre, apaixonados, quase sempre
Eu levo trinta, ai filho, eu faço por menos, e sobre nós eles esquisitos, e sobre nós escamas, pareciam peixes com pernas, peixes com braços, peixes com uma cabeça de xisto, grande, muito grande, peixes com mãos semelhantes a um alicate de corte, escamas, pareciam-me e não eram, montanhas vestidas com caixas de cartão que sobejaram das últimas compras em Paris, peixes
Pareciam-me
E não eram,
Pareciam-me
E não eram,
Peixes, quase sempre, com braços, quase sempre, com pernas, quase sempre, apaixonados, quase sempre
Eu levo trinta, ai filho, eu faço por menos,
E não eram, obrigado pela recordação, gemidos, ele, ela, os dois pareciam a avenida Almirante Reis em discussões incompletas, ele, ela, os dois pareciam
E não eram
Peixes.
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó