desenho de: Francisco Luís Fontinha
Dirigi, atravessei fronteiras antes inultrapassáveis, subi muros, desci avenidas, ergui-me, caí, voltei a erguer-me e novamente caí, escrevia, riscava, rasgava... fazia arder a manhã misturada em pedaços de cacimbo e tecidos vagabundos, fui uma ilha, fui uma rocha, fui um longo cubo com lábios triangulares, fui seno, fui cosseno, vivi em união de facto com a tangente, fui amante, de noite, as clandestinas visitas à cotangente..., e do círculo trigonométrico..., nada restou, depois, da tempestade, nuvens, chuva entrando em nós, de ti, uma pedra mármore com a tua fotografia, diz lá
O quê?
Eterna saudade de nós..., de mim, em ti, dirigi, suicidei-me, atravessei antes inultrapassáveis ruas, hoje, escuras, ardósias como ninguém percebeu, que um dia qualquer, um dia, ao lado do café, um miúdo, miúdo com sandálias de couro, percebeu, percebi, que a morte entrava-nos, e levava-te como levou todas as árvores que dormiam sobre as nossas sombras, dilatavam-se as tuas pálpebras, dirigi, adormeci, acordei num jardim recheado de zínias, fui feliz, infeliz, fui feliz, fui agreste, montanha, passeio pedestre, fui
O quê?
Ratazanas
Dirigi, vivi sobrevoando canteiros e riachos, sobrevivi aos beijos assassinos dos guindastes de chumbo, naveguei, cruzei oceanos como se eu fosse uma leve e tranquila folha de alumínio com uma bolha castanha, andava, ia a cima, descia, vinha a baixo, sentava-me, despedia-me, levantava-me, erguia-me... e caía,
As ratazanas amigas, amigos, protestantes e mendigos, vivi, fui vivendo, dirigi e atravessei o teu corpo transparente embrulhado em jornais envelhecidos, tinhas rugas, usavas sapatos cambados, e fui aprendendo a ultrapassar, dirigi, fui roupeiro, cobertor, homem espantalho, fui há muito tempo
Palhaço,
O quê? O que têm as ratazanas?
Palhaços, cabelos de fino arame, fui trapezista, vendi pipocas, corri avenidas em tristes engates, fui ratazana, fui praia, areia, ou barco, fui aço, fui âncora, palhaço, circo, pedestal, dirigi, cansei-me de olhar o rio, cansei-me de colocar a minha pobre mão na salgada água, lembras-me o mar, o ébano eu?
O quê?
Tínhamos zínias, cheirava em nosso redor a Primavera embriagada, desconfiávamos que o amor tinha algures um ninho num dos ramos da árvore de papel do nosso quintal onde brincávamos em meninos, não dávamos importância alguma aos pêssegos, às laranjas, às roulotes com lentes de contacto, um parvalhão de fita métrica na mão assaltava transeunte, chovia, não sabíamos, eu desconfiava dos vidros das janelas da casa das ratazanas,
Eu? Não sabia...
Desconfiava apenas,
Ratazanas, zínias enraivecidas com dentes de marfim afiados, metadona desconfiada, sem dono e abandonada, tudo se vende, tudo se compra, o zinco em chapas, os telhados em vidro, as barracas
Quais barracas?
As casas, húmidas, vivendo-se dias desenhados sobre a areia molhada, vinha o vento... e nada, tudo desaparecia, tudo se deitava, dormia, dormiam as zínias, as ratazanas, a mulheres-a-dias e as concubinas..., o quê? Eu? Não o sei... como o poderia saber,
Que horas são, hoje, mulher do mar, de mar, ao mar,
Desculpa?
Que horas são, mulher-a-dias, veleiro carrancudo, com velas de assobio, o circo, as tuas mãos desprezíveis, íngremes como as calçadas nocturnas das cidades escuras, desculpa...
Feldspato?
Não o sei, pergunta ao gerente da barraca, talvez ele saiba...
Gosto, não gosto... pelas dúvidas... deixo-te um like sobre as sobrancelhas, e
Dirigi e caí,
Me levantei, voltei a cair, e caí, me ergui, e me pendurei no teu pescoço de galinha envenenada, serpente, crocodilo, em madeira, em bom estado, vende-se dentadura postiça, primeira mão, em prestações, trinta e seis suaves, como lírios, como zínias, cachorros e cadelas e trapezistas e palhaços e trompetes de aço, me levantei, eu, e para quê?
Me sentei em ti, dormi, envelheci, e quando acordei, tu, vestida de mar..., me seduzi, me engatei nos laços transversais dos parafusos encalhados, fui, vou-me a ela, fui rua, donzela, fui... e nua, nua a tua doce madrugada.
Dirigi. Menti. Atravessei fronteiras antes inultrapassáveis, subi muros, desci avenidas, ergui-me, caí, voltei a erguer-me e novamente caí, escrevia, riscava, rasgava... tudo, tudo para nada.
(texto, ficção, vida, desenho, arte, zínias, jardins, amor, Primavera, tudo, e nada, pouca coisa, desenvergonhada, ela, paixão de areia, homens de vidro, cabelos frios e secos, mendigos).
(não revisto – quase ficção)
@Francisco Luís Fontinha