Quem sou,
Das mãos mergulhadas em mim sorri a claraboia da solidão, o cais emagrece no final de tarde, das mãos mergulhadas em mim os teus lábios embebidos nas lágrimas do paquete de partida para Lisboa, a cidade afunda-se nas mãos mergulhadas em mim, a cidade aos poucos longe e desaparece entre as palmeiras,
É noite
- Quem sou?
Na algibeira dos sonhos, é noite no sorriso das árvores, é noite
- Quem sou Mãos mergulhadas em ti quando poisas as pétalas dos teus olhos nos meus lábios, Quem sou,
É noite dentro da alvorada sem janelas para o mar, e ao longe engasga-se o rabugento paquete cansado de navegar,
- Detesto os teus versos, detesto as tuas palavras e todas as merdas que desenhas, Quem és?, uma fogueira que se alimenta de papéis e palavras e riscos e cores e de nada…
Um cachimbo de água entalado nas coxas da noite
- Talvez,
É isso que sou, um misero cachimbo de água comprado a um Marroquino abraçado às nádegas cinzentas da maré, Cais de Sodré, Cais de Sodré tem os seus encantos, e quando me sentava
- Pagas um copo Riqueza?
As meninas vestidas de algodão doce pareciam gotinhas de saliva, e eu, e eu quem sou?, e eu apenas procurava o silêncio, e eu não queria engatar nem ser engatado,
- Um cachimbo de água entalado nas coxas da noite e das mãos mergulhadas em mim sorri a claraboia da solidão, e quando me sentava sentia o meu corpo voar sobre a escuridão do Tejo,
Cais de Sodré tem os seus encantos, e eu perdia-me nos cigarros antes de descer ao poço do inferno, ziguezagueando subia a calçada em sílabas embriagadas, sentia que me seguiam, ouvia-lhe os gemidos,
- Pagas um copo Riqueza?
E que não Respondia-lhe a algibeira dos sonhos.
(texto de ficção)
Obrigado
Hoje decidi eliminar os meus blogs do Sapo. PT e a minha conta do facebook.
Porquê? Apeteceu-me.
E foi um prazer.
E de hoje em diante só vou publicar aqui neste espaço acolhedor, que é e sempre foi o meu orgulho; o verdadeiro Cachimbo de Água.
Vinte decilitros de água no estado sólido,
Agitar bem,
Nas escadas que dão acesso ao sótão e as telas e os pincéis e os tubos de tinta embrulhados nas teias de aranha do compartimento exíguo e mais pequeno que um caixão de madeira, o meu atelier, onde escrevo onde pinto e onde defeco estas horríveis palavras com as minhas horríveis mãos e lidas com os meus horríveis olhos e que publico no meu horrível blog,
- O cansaço dos dias dentro da minha cabeça esvaziada pelo fluxo crematório das horas infindáveis, o estúpido do rafeiro que me rói os tornozelos de madeira, finca os insignificantes dentes nas minhas calças, e era uma vez um par de calças,
Sorri-me na sombra da noite,
O blog que criei e que baptizei de cachimbo de água, vinte decilitros de água no estado sólido, agitar bem, e as palavras misturam-se na luz do candeeiro, o fumo do cachimbo empapa-se nas órbitas salientes dos postigos debruçados sobre o telhado do vizinho, e o cubículo caixão tão minguado que nem ela lá cabia deitada, nua, nua nem pensar,
- E os livros?,
Os livros excitavam-se e pluf…
O soalho durante a noite a esticar os bracinhos, o ruído do batimento do coração da porta de entrada, as veias que transportam os electrões salientes no corpo das paredes, toco no interruptor, e em vez de acender a luz da sala oiço o cavalo a rinchar na loja, o electricista cambiou os finíssimos fios da instalação eléctrica, e pluf,
A excitação dos livros a excitação das moscas de asa adocicada a excitação dos cachimbos de madeira, a minha própria excitação, quando,
- Abro a janela e um petroleiro de bico amarelo que nos olha, e o cubículo caixão roda, o corpo de bruços estende-se ao longo do soalho, e agora?,
Vai mesmo de pé,
O cachimbo de água magríssimo na tarde sobre a secretária, agitar bem, e o atelier transpira e o suor esconde-se junto ao rodapé, do ar rarefeito do cheiro intenso a gaivotas envenenadas pelo sol um dos quadros separa-se da parede e tomba na areia junto à praia,
- De pé porque não!,
Vinte decilitros de água no estado sólido,
Uma carcaça e uma moeda de dois euros, e não falta nada e o cubículo caixão cerra os olhos no cacimbo da tarde, começa a chover, aqui não, e certamente que neste preciso momento chove, em sitio algum, fecho a janela e apago a luz; o atelier some-se nas cascatas que por entre as rochas deitam lágrimas, e o rio engorda e o rio silenciosamente deita-se no mar.
Semeiam-se palavras na água do cachimbo,
Brincam sílabas e vogais no fumo do cachimbo. Dizem-me as nuvens que no mar a revolução dos peixes, e no céu, no céu a indiferença dos pássaros, e o vento deixou de soprar,
- Deixem-me em paz, não, não quero saber disso,
Os peixes em revolução, e depois?, os pássaros indiferentes, e depois?, és tão parvo diz-me ela, és tão parvo em semear palavras na água do cachimbo, diluem-se como vento nas searas da minha aldeia, do sino de Carvalhais vem a pontualidade das horas que me irritam, ele a matar o tempo e as pedras aos poucos contra o alvo do canastro, as espigas de milho do ano passado gemem entre as ripas de madeira, a luz roda o corpinho e atravessa as frestas, e nos espaços vazios o sorriso de uma gaivota,
- E o vento deixou de soprar, e a culpa é minha?, deixem-me em paz…
De uma gaivota as asas bordadas com pétalas de rosa, pai, sim filho responde ele pensativamente, porque choram os plátanos, os plátanos?, não, estás a brincar, os plátanos não choram, os peixes não se revoltam e os pássaros, que têm os pássaros pai, os pássaros não indiferentes, e os pássaros e o vento de mãos dadas junto à ribeira, pai, sim filho, mas tu disseste que o vento deixou de soprar, sim disse estava a brincar,
- Carvalhais longe de mim, a eira começa a adormecer e as amarras que prendem o canastro a Favarrel começam a encolher na sombra da noite,
Pai, sim filho, S. Pedro do Sul é tão lindo, sim filho é, olha, sim pai, e tem os Fingertips, e o rio leva-me ao rio, e vou levar-te onde o avô Domingos me levou, onde pai, ao Castro da Cárcoda, onde o silêncio se pinta de branco e os cigarros parecem andorinhas junto ao mar,
. Semeiam-se palavras na água do cachimbo, brincam sílabas e vogais no fumo do cachimbo, e o cachimbo sentado à minha esquerda, o cachimbo impaciente por mim,
Semeio palavras na terra arada do cachimbo, encosto-me à enxada e olho o mar, e Luanda nunca tão perto de mim, e vejo o meu corpo dentro de um quadrado imaginário, e em cada vértice um bocadinho de mim, em cada vértice, Luanda, Alijó, S. Pedro do Sul e Lisboa,
- Deixem-me em paz, não, não quero saber disso.
Todas as coisas têm uma estória, todas as coisas têm uma vida. O corpo morre e fica a estória, e o cachimbo de água só morrerá com o desaparecimento do meu corpo, mas quando ele for pó, o blog cachimbo de água permanecerá algures na rede, palavras que ficarão mesmo depois de eu deixar de existir.
Poderia começar a história do cachimbo de água com… Era uma vez…
Mas não faz sentido porque o cachimbo de água está vivo e presente em cada momento de mim, e de vós.
O miúdo que nasce em Luanda e que ainda hoje procura na memória os cheiros e as sombras da cidade, aos poucos, já em Portugal, começa a devorar livros pela influência do pai, dos livros vêm as palavras e até à escrita é um saltinho.
Eu, anti-cigarros, para enganar a saudade, em Lisboa, começo a escutar no fumo as palavras que me habituara em casa, o sentar-me junto ao Tejo a olhar o rio e a criança que acabava de regressar de Angola, e em todos os barcos eu sentia a presença do menino que fazia papagaios de papel e se deitava debaixo das mangueira, de barriga para o ar, a olhar o céu…
A vida traz-me a paixão pelos cachimbos, e quando percebo, trinta e seis cachimbos em madeira, trinta e seis estórias. Olhava-os e sentia que faltava algo, faltava um cachimbo de água.
Um dia, daqueles dias em que não temos paciência para nada, um Marroquino a querer impingir-me bugigangas, e para o despachar da minha impaciência pergunto-lhe se tinha cachimbos de água, ele em resposta curta que não mas para não me preocupar porque ia encontrar um, ele acreditava que eu falava a sério, eu acreditava que ele brincava comigo, e uns dias depois, quando eu já tinha esquecido o cachimbo, ele aparece-me com este cachimbo de água, e que desde então poisa pacientemente sobre a minha secretária, sentado à minha esquerda.
Eu, sentado à sua direita, escrevo palavras, palavras que após a minha morte, continuarão vivas no blog Cachimbo de Água.
(Obrigado à Teresa Alves da equipa dos blogs Sapo e ao Rui Morais, grande artista da fotografia de Alijó)
Junto à ribeira
Deixo a minha mão adormecida
E nos meus olhos
Vive o monstro da noite
Sento-me no xisto esquecido pela tempestade
E as lágrimas invadem o meu rosto
Junto à ribeira
A minha mão que se afoga na água da madrugada
E o meu corpo despede-se de mim
Separa-se em pedacinhos
Raios de sol
Que pela manhã entram no meu quarto.
Em reconhecimento à equipa dos blogs do Sapo Angola por tudo o que tem feito por mim a partir de hoje os meus textos e poemas serão apenas publicados no meu blog do Sapo Angola.
Luís Fontinha
Alijó
Olho pela janela, chove. Coloco os óculos no meu rosto emagrecido, estou magro, às vezes cansado, faço umas brincadeiras com a caneta e dou conta que na minha mão nada, comporto-me como se lá tivesse poisada uma pena, dou umas baforadas no cachimbo de água, olho fixamente para a folha de papel que em cima da secretária adormece, e aos poucos as palavras começam a alimentar-me o cansaço,
“ Junto ao mar, 26 de Março de 2011
Meu querido,
Toda a tarde esperei por ti, mas tu hoje não vieste. Senti a tua falta meu desespero, e recordei quando entras em mim e dentro da minha cabeça ditas as palavras que eu escrevo no vento, mas tu meu desespero, tu hoje não vieste.
Não comi quase nada hoje.
A tristeza entrou-me pela porta, e reparei que no jardim as árvores estão tristes, talvez porque choveu, talvez porque hoje é sábado.
Não comi quase nada hoje, e durante a tarde, à espera que viesses, andei descalça junto ao mar, e a areia alivia-me este cansaço que dentro de mim habita, este desassossego de não estar feliz nunca, de não conseguir adormecer sem os teus carinhos, sem as palavras que me ditas e eu as escrevo no vento.
Toda a tarde esperei por ti, mas tu hoje não vieste. Senti a tua falta meu desespero, e não percebo porque chove tanto e o mar tão calmo, o mar calmo e a minha mão espera pela tua, e sei que te escondes em qualquer pedacinho desta praia, mas por mais que eu olhe, não te encontro.
Meu querido desespero, se me estás a ouvir vem junto a mim, pega na minha mão, pega na minha mão e leva-me para dentro do mar; se me estás a ouvir, preciso de ti…
Eu sempre tua,
Marilu”
In Crónicas de um Travesti; carta ao desespero (3)
E o cansaço disperso no pavimento como se o sol tivesse deixado de acordar, olho pela janela, chove. Coloco os óculos no meu rosto emagrecido, estou magro, às vezes cansado, poiso a caneta na secretária e enquanto a minha mão fica em liberdade, o poema sobe-me pelo braço até à boca, e nos meus lábios soltam-se sílabas, e sinto as frases voarem pelas paredes do meu quarto, e o poema é poema,
Junto à ribeira
Deixo a minha mão adormecida
E nos meus olhos
Vive o monstro da noite
Sento-me no xisto esquecido pela tempestade
E as lágrimas invadem o meu rosto
Junto à ribeira
A minha mão que se afoga na água da madrugada
E o meu corpo despede-se de mim
Separa-se em pedacinhos
Raios de sol
Que pela manhã entram no meu quarto.
Olho pela janela, chove. Pego nos óculos e poiso-os na secretária, dou duas baforadas no cachimbo de água e fecho os olhos.
(texto de ficção)
FLRF
26 de Março de 2011
Alijó