Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

21
Mai 16

imagina que as cidades são estátuas sonâmbulas

sons íngremes voando sobre o mar

que a alma absorve na escuridão

imagina que o amor é a floresta virgem

perdida nas mãos de uma criança

no seu sorriso uma bandeira

sem esperança

imagina que há na saudade um esqueleto de vidro

com cortinados de paixão…

perdido…

agachado no chão ténue do sofrido

imagina… meu amor

imagina as gaivotas poisadas no teu olhar

esperando o meu regresso

sempre

sempre ao madrugar…

imagina…

imagina o meu coração deixado numa loja de penhores

numa tarde de inferno

imagina…

imagina o cansaço da abelha no final do dia

embriagada de pólen

e de barriga vazia…

imagina… meu amor

esta carta sem remetente

esta carta sem destinatário…

imagina

imagina

meu amor

imagina que as cidades são palavras a arder

nos lábios do operário

sempre

meu amor

sempre sem vontade de escrever…

 

Francisco Luís Fontinha

sábado, 21 de Maio de 2016

publicado por Francisco Luís Fontinha às 20:49

25
Dez 15

Ontem recebi carta dela, está tudo bem, os arrozais ainda dormem, os coqueiros soluçam entre os finos cortinados de tristeza e a claridade do fim de tarde,

Adeus, ontem recebi, a carta vinha amarrotada, cansada, e embalsamada como as rosas no interior de um livro, o parvalhão de um livro,

Se algum dia eu abraçava uma rosa embalsamada…

De um livro, muitos anos, Einstein para recordarmos o que era impossível de recordar, a separação, o fim, e o adeus das gaivotas a cada encerrar de uma janela que só a dor consegue fazer sobreviver,

Tínhamos,

Inventamos o amor “transtemporal” os catetos, a hipotenusa, a verruga, o cinzeiro a abarrotar de conversas sem nexo, nunca tive um sonho, morri sempre na praia, nunca, se algum dia eu abraçava uma rosa embalsamada…, nem eu, ouvia-a

Tínhamos, não sonhos, não sorrisos, não beijos, nem um simples calendário suspenso na cozinha, nunca sabíamos a quanto andávamos, se era terça-feira, sexta-feira… tanto faz, ouvia-a, irritava-me com a sua ausência, mas sempre que podia

Partia, levava todas as roupas e todos os livros, até as velhas cartas transportava na bagageira, e nunca me disse adeus,

Amanhã,

Me disse adeus, até amanhã, amo-te, nada, nada

Como hoje

Nada.

 

(ficção)

Francisco Luís Fontinha – Alijó

sexta-feira, 25 de Dezembro de 2015

publicado por Francisco Luís Fontinha às 12:40

10
Ago 15

desenho_11_08_2015.png

(desenho de Francisco Luís Fontinha)

 

Desta carta escrita

Nada restará

Será pó

Melodia desencantada

Como triste

A madrugada

Como triste a noite magoada

Desta carta…

Nenhuma réstia de silêncio sobejará

A enjoada jangada que transporta a solidão

Cai sobre a sombra desorientada dos meus braços alicerçados à terra

E eu sonharei,

 

Um dia

Uma cidade inventada

Nascerá no meu peito

Com ruas

Casas desabitadas

Gente cansada

Crianças à volta das árvores…

Gritando junto aos barcos em papel,

 

Não tenho medo

Não pertenço a esta melancólica avenida

Irritada

Sangrenta

E desta carta…

 

Pó.

 

Francisco Luís Fontinha – Alijó

Segunda-feira, 10 de Agosto de 2015

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:33

15
Jan 15

Pintura_61_A1_Nova.jpg

(desenho de Francisco Luís Fontinha)

 

 

A mentira dos homens

mergulhada na falsa memória,

a solidão das palavras,

escritas e semeadas,

nos longínquos corredores da insónia,

o imperfeito corpo do espelho que alimenta a paixão...

em pedaços,

tão pequeninos... como grãos de areia em pleno voo matinal,

as telas amordaçadas que habitam a minha casa, ardem,

sinto o fumo de néon quando pego numa caneta,

tenho uma carta para escrever...

mas,

 

mas mergulho na falsa memória,

sem destinatário,

sem remetente...

tão sós...

o subscrito,

e a folha de papel oferecida por um pindérico pássaro de cigarro nos lábios...

 

 

 

Francisco Luís Fontinha – Alijó

Quinta-feira, 15 de Janeiro de 2015

 

publicado por Francisco Luís Fontinha às 20:18

09
Jan 15

(desenho de Francisco Luís Fontinha)

 

 

Entras-me em casa

e aposentas-te nos meus braços

escrevo palavras nos teus olhos

vagueio sobriamente nos teus seios

entras-me em carta como se fosses uma carta

lembras-te?

daquelas onde desenhavas corações

flores

e eu?

círculos e quadrados,

equações,

a cidade arde no sexo desejado

o amor alicerça-se à sombra do teu corpo

e eu?

um acorrentado,

morto.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha – Alijó

Quinta-feira, 8 de Janeiro de 2015

publicado por Francisco Luís Fontinha às 00:45

09
Abr 14

A correspondência pesadíssima balançava no meu braço esquerdo, de mão amachucada dentro da algibeira, procurava cigarros com sabor a saudade, o carteiro nem tinha começado o giro e já se encontrava cansado, sonolento, e o carteiro... eu mesmo, disfarçado de andaime ambulante e despropositadamente peguei num subscrito, apenas porque chamou-me a atenção a quantidade de selos e os desenhos dos mesmos, deslumbrantes como as planícies iluminadas das ruas embriagadas de uma cidade em construção,

Deve vir de longe, pensei,

E eu, eu ali, suspenso entre o olhar obtuso e a penumbra neblina do fumo do meu pobre cigarro, comecei a manuseá-lo como se fosse o rosto de alguém desconhecido, alguém que pela primeira vez tocava nas minhas mãos, senti um leve arrepio e sou embrulhado em palavras, confesso, palavras que nunca na minha vida de carteiro tinha encontrado, tocado..., ou, tocar toquei..., mas apenas nos selos, e por alguns minutos,

Acariciado?

Isso, acariciado, isso, acariciei,

E repentinamente sou invadido por pequeníssimos sons metálicos, e



“Canadá, 09/04/2014

Meu querido,

Devido às circunstâncias que tu já conheces, fui obrigado a ausentar-me desse País e da tua vida, não sei se o fiz de livre vontade, não sei se o devia ter feito, mas..., e fi-lo acreditando que me libertava da tua voz, não o consegui e ela permanece entranhada no meu corpo esguio de árvore caduca, e não estou arrependido, não, não estou arrependido,”

Entre o silêncio sinto a dor que o meu cigarro provocava nos meus dedos e o cheiro a pele queimada, sentia-me tão embalsamado pelas palavras que me embrulhavam que acabei por esquecer-me que estava a fumar e que o diabo do cigarro tinha acabado de morrer, a morte, sempre a morte dos cigarros, essa sim, o medo que me atormenta, quando vejo e sinto a morte de um, seja um só ou vinte, ou trinta...,

E voltava a sentir no meu esqueleto as tais palavras que eu nunca duvidei que vinham do subscrito que poisava na minha mão,

“Ontem estive a reler as nossas cartas, tanto tempo passou entre as equações dos nossos corpos na ardósia de um velho divã e o sentido poético dos teus dedos, lembras-te quando lias para mim AL Berto?, lembras-te quando lias para mim Cesariny?, ontem percebi que as Acácias deixaram de sorrir quando entraste naquela ruela sem janelas, e tu, e tu nunca mais regressaste, e tu”

Possa... que não entendo nada disto!,

“E tu começaste a ter asas, a sair de casa manhã cedo, e às vezes, nem regressavas no final da tarde, e eu sentia que te perdia como o marinheiro sabe quando a sua embarcação está prestes a afundar-se... e pluf, novamente silêncio, e pluf, novamente Primavera,

E pluf, entravas casa adentro e com o teu sorriso de solidão dizias-me

Olá amor!,

E hoje enquanto relei-o as nossas cartas, algumas delas parecem os cigarros do carteiro aí da tua rua, cartas mortas, descoloridas, e os corações desenhos por mim..., não corações, desapareceram como desapareceu o cinzeiro de prata que levaste para vender e em troca

Pluf,

Mais um regresso adiado, e eu, eu acreditava sempre, sempre,”

Procuro outro cigarro, sinto frio e percebo que alguma coisa não está correcta, aquelas palavras e aqueles sons metálicos deixavam-me totalmente desnorteado, tremia, ressacava, e no entanto, e no entanto conhecia aquela voz que vinha da escuridão,

“Meu querido, espero que entendas a minha ausência, espero...”

Deixei de ouvir a voz e cada vez menos chegavam a mim os metálicos sons, até que

“Despeço-me com saudade,

Sempre,

Alberto”

Volto a colocar o subscrito na sacola e começo a caminhar para a primeira casa da rua, a Dona Joana esperava a carta da filha que tinha partido para Lisboa, ainda menina, ainda inocente,

E uma luz preenche as minhas pálpebras de verniz, os meus olhos pareciam cortinados negros sem vontade de correrem em direcção ao cais dos cigarros mortos, aos poucos, muito devagar... vou-os abrindo como quem abre pela primeira vez uma porta de entrada de uma casa descolorida e percebi, e percebi que tinha sonhado,

E percebi que não havia carteiro nenhum e percebi que nunca existiu subscrito nenhum, e tão pouco conheço alguém que viva no Canadá...

Corro para o banho e depois de alguns minutos a sacudir as palavras do subscrito..., percebi que nem da cama ainda tinha saído.





Francisco Luís Fontinha – Alijó

Quarta-feira, 9 de Março de 2014

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:34

06
Jul 13

foto: A&M ART and Photos

 

Vivíamos perto da fronteira com a loucura, havia flores que nunca acordavam, e quando o faziam, sonolentas, pareciam vadios homens deambulando as paredes frias, finas e escuras, do corredor com acesso a lado nenhum, um postigo embriagado, todas as manhãs se abria como os olhos das borboletas quando as pálpebras do silêncio se dilatam, aumentam de volume e começam a chorar, o dia clareava em duodécimos, e pouco depois, digamos que

Tempo de mais,

Elas apareciam vestidas com roupas leves, de cor branca, com o aqui e além, dispersas em sacrifícios de momentos devastados pela chegada da tempestade e partida da solidão, dizia eu, algumas rosas em puro linho, que ao longe mais pareciam janelas, ainda mergulhei-me em pensamentos parvos

Será que ela tem janelas no peito?

Claro que não, claro que não, e pitosga como sou, facilmente confundiria uma palmeira com um beijo, ou

Será que ela ainda pensa em mim?

Ou

Claro que não, claro

Que esperavas, tu?

Eu?

Sou um tipo porreiro, tenho amigos em todo o lado e ainda ontem

Claro que não, Alice, claro que não,

E ainda ontem recebi uma carta (mesmo carta, em papel, com letras desenhadas a caneta e perfumada) cujo remetente era algures da Lua..., como vês, minha filha, o teu pai começa a ficar famoso,

Se eu penso em ti, Alice?

Claro que sim, claro que sim, não, não é engano, o remetente é mesmo da Lua...,

E ainda ontem, Sábado, vi pela ultima vez o teu corpo nu e estranhamente escrito com as minhas palavras, estranho não é? Se eu penso em ti, querida Alice? Claro

Mas ontem foi Sexta-feira..., então foi hoje,

Claro que penso, claro que penso nas palmeiras esperando o regresso do final do dia, o velho Francisco desce cuidadosamente os cortinados do desejo sobre as labaredas do teu corpo a transpirar poesia e pequena literatura, diga-se

(de merda)

Diga-se que sim, que tenho saudades das palmeiras, e da tua voz quando disfarçada me melancolia, quando timidamente me dizias

Amo-te João,

Me dizias que as palmeiras inventavam fotografias, e que ainda hoje, Claro que sim, querida Alice!, que ainda hoje espero pela chegada da tenda do circo onde vivem as tuas mãos, aquelas, Recordas-te, querida Alice?

Sim, aquelas que te afagavam o cabelos...

E depois de me cerrares as pálpebras... eu adormecia no teu débil peito de seios minúsculos, como o vento, aturando limões contra os vidros das janelas, aquelas que eu pensava serem janelas, e que nunca passaram de rosas bordadas pela tua avó...

O que será feito da tua avó, Alice?

Um dia, como nós, simples partículas de poeira viajando pelo espaço escuro e frio, e responder-te-ei...

Claro que sim, Alice, claro que sim, as palmeiras.

 

(ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:08

09
Abr 12

Meu querido irmão,

Por aqui tudo igual como no jornal,

As notícias de sempre DESEMPREGO CRISE CRISE DESEMPREGO DESEMPREGO uma loucura meu querido João,

FOME DESEMPREGO CRISE FOME e que a senhora não sei das quantas retirou as rugas como se essa merda me interessasse para alguma coisa, uma loucura meu querido João, e o dinheiro mal dá para o pão quanto mais para esconder a merda das rugas,

Olha Meu irmão Comprei um burrinho em Miranda do Douro, é giro e engraçadinho, e sempre se poupa alguns aéreos em combustível, e depois de inaugurado o IC5 é um instantinho e zás, estamos em Espanha, Vais gostar de o ver e logo que possível envio-te a foto e até podes colocar no mural do teu Facebook O BURRINHO DO MEU MANO, vai ser giro,

As galinhas morreram devido aos elevados custo de produção e trocando por miúdos Foram-se Morreram de fome, quanto à coelha está outra vez prenha, impressionante, não faz outra coisa…

De tarde fui visitar o nosso primo Augusto e na revista do jornal um cromo perguntava, Não meu querido João, Essa do beijo se está grávida já tem barbas, Que não aguentava fazer amor tantas vezes por dia, não acreditas?, mas infelizmente é verdade, e tem três hipóteses VIAGRA OFERECER UM VIBRADOR À DITA PELO NATAL ou TELEFONAR E PEDIR AJUDA AOS AMIGOS, Não é para isso que servem os amigos Meu querido João?

Meu querido João Por aqui tudo igual como no jornal, e cada vez pior…

Nem me interessam as rugas da senhora nem

 

“lá fora mário

longe da memória lisboa ressona esquecendo

quem perdeu o barco das duas ou se aquele que caminha

será atropelado ao amanhecer ou se o soldado

que falhou o degrau do eléctrico para a ajuda fode

ou ajuda ou não ajuda e se lisboa num vão de escadas

é isto

tão triste mário sobre o tejo um apito” (AL Berto)

O que me interessa mesmo Meu querido João é encontrar trabalho.

Abraço,

Francisco

 

(texto de ficção não revisto)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:51

23
Jan 12

Há coisas que nunca devem ser feitas na vida,

Não me refiro à noite em que me passei da cabeça e queimei a grande parte dos meus desenhos e textos e poemas numa lareira do Bairro do Hospital quando tinha vinte e poucos anos e mais tarde percebi que Nikolai Gógol tinha feito o mesmo com “Almas mortas”,

Mas refiro-me a uma carta de amor E já sinto nas vossas cabecinhas a pergunta pertinente Porquê uma carta de amor?,

Porque numa noite de copos na Ajuda onde seis marialvas bebiam e comiam, incluindo eu, um dos presentes, bom rapaz e muito honesto e muito simples e coitado…  que carregava nos ombros uma história de abandono por parte da mãe e um pai todos os dias embriagado com uma ninhada de irmãos, e de instrução quase nenhuma porque abandonou a primária nos primeiros anos para ganhar para a casa

- Porquê uma carta de amor?,

Para ganhar para a casa as letras para ele pareciam os carris da linha férrea Pinhão-Régua em assobios dentro dos socalcos do Douro, e com ele guardava religiosamente uma carta da namorada que tinha chegado nessa tarde, e pensava ele que dos cinco eu era o que tinha mais juízo, e juro que quando me olhava ao espelho acreditava ser um menino de igreja que depois da solene deixou de frequentar, não incluindo as faltas à catequese da Benigna, mas adiante, pede-me

- Podes ler-me esta carta se fazes favor E eu cá para mim Já te lixaste,

Pede-me e já a carta poisava nos seios da minha mão, começo silenciosamente a despi-la e aos poucos pela janela do envelope começam a acordar corações desenhados a marcador encarnado e a palavra Amo-te a todo o comprimento do lençol e milhões de beijos,

- Na Ajuda onde seis marialvas bebiam e comiam,

E amor eterno até que a morte Até que a morte nos separe,

- Então Fontinha o que diz?,

Respondo-lhe que era melhor ele não saber, Porque eu precisava de tempo para inventar uma estória, e fazendo o papel de leitor de uma carta de amor disse-lhe os maiores disparates incluindo o fim do namoro e ao cair do pano um par de cornos, e claro que nada daquilo existia na carta, mas ele acreditou,

- Não chores pá Gajas há muitas Dizia-lhe um dos marialvas,

E chorava e chorava e chorava,

E foi muito difícil convencê-lo que tudo não passava de uma brincadeira de cinco gajos que bebiam e comiam… e estavam fartos das noites da Ajuda,

- Então Fontinha o que diz?,

Que há coisas que nunca devem ser feitas na vida, uma delas, gozar com os sentimentos dos outros…

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:31
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16
Jul 11

O som das teclas da máquina de escrever,

A janela com a boca aberta para a noite que começa a descer da serra, no teto uma lâmpada engasgada conforme o tio serafim liga e desliga o moinho elétrico, e sobre a mesa, junto ao teclado mecânico da máquina de escrever, cerveja, alguns livros, folhas dispersas e amontoadas, e um rádio que se afoga no oceano pacifico,

 

- Minha querida,

Acreditava que o silêncio não existia, mas confesso-te que estava errado, Como assim Pergunta-me ela, o silêncio existe e eu estou abraçado a ele, poiso os cotovelos sobre o peitoril e seguro a cabeça com as duas mãos, olho, E o que vejo?, a noite, as estrelas, a lua que me olha e a sombra do milho onde brincam ratinhos às escondidas, nada mais do que isto, Acreditas?, e vê tu que até consigo ouvir o ressonar da trombose do avô domingos que agonia sobre a cama no quarto ao lado, desculpa-me os passos lentos das minhas palavras mas às vezes as teclas da máquina prendem-se à pouca luminosidade, outras vezes, outras vezes são as moscas que saltitam sobre as teclas e sou forçado aos erros de ortografia, e também, e também só daqui a muitos anos é que entrará em vigor o futuro acordo ortográfico, Aquele? Lamenta-se ela, sim minha querida, aquele que me come o C do teto, porque neste momento a lâmpada está pendurada no tecto, e amanhã, daqui a muitas manhãs, a mesma lâmpada pendurada no teto, mas adiante, depois falamos nisso,

 

Faço uma pausa na escrita, numa golada à garrafa de cerveja volto a pendurar-me na janela de olhos abertos para a serra, oiço o som melodioso dos grilos e de outros bichos que desconheço o nome, o quarto começa a escurecer, e vem-me logo à ideia, Lá anda o tio serafim com o moinho aos tombos e os grãozinhos de trigo esmagados na penumbra da noite!, e daqui estou a ouvi-lo  rosnar ao fundo da terra do avô domingos, e cinquenta metros separam as duas casas ensonadas e velhas,

 

Voltando à tua carta, minha querida, a noite aqui não tem fim, e eu gostava que fosse sempre assim, Sempre noite?, pergunta-me ela, sim, sempre noite, sempre esta noite virada para a serra, o cheiro da terra molhada da rega do fim da tarde, a água sempre a brotar para o tanque e a sumir-se na terra, e de hora a hora o maldito sino da igreja em horários noturnos, e olha, outro C que acaba de ser comido, espera-me só um pouquinho, Sim?, não demoro,

 

Uma mão em velocidade sobre a mesa e uma mosca acaba de pôr termo à vida, e eu começo a imaginar as tuas pieguices, Francisco, matar uma mosca é crime!, punível com pena de prisão até quinze anos, e que se lixe penso eu, menos uma em brincadeiras nas teclas da máquina, os cigarros chamam-me e volto à janela, e perco os olhos na escuridão, e repentinamente diante de mim todas as palavras que tenho para te dizer, todas,

 

Desculpa, minha querida,

São quase três horas e não tenho sono, e depois de terminar esta carta talvez ainda vá ler alguma coisa, O que estás a ler?, ela na minha direção, e mais um C, O que estou a ler?, daqui a muitos anos, daqui a muitos anos eu a ler António Lobo Antunes “Auto dos Danados”, e possivelmente ele ainda não o tenha escrito, ela com o sorriso a fugir-me da sombra, e eu respondo, possivelmente não,

 

E tens a certeza que posso vir a ser condenado por matar uma mosca?, e ela responde-me que sim, e eu penso, malditos ecologistas e ambientalistas, e era só o que me faltava,

 

E tenho a certeza que não, e não sei, porque O Auto dos Danados é de 1985, e possivelmente ande com ele aos tombos nas teclas de uma máquina de escrever, e desculpa minha querida, vou ter de terminar, os dedos começam a perder-se no sorriso da janela,

Espero que estejas bem,

Um beijo.

 

E era só o que me faltava, Eu preso, eu preso por matar uma mosca, mas enfim, e as pálpebras a fecharem-se-me em pedacinhos como papel de máquina, retiro a folha, passo-lhe em momentos de seda os olhos, coloco a tampa na máquina de escrever, levanto-me e vou até à direção da janela, e outro C comido, puxo de um cigarro e fico esquecido a olhar a serra.

Acorda a manhã.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:27

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