E que os dias se escondem nas sombras dos ponteiros de um relógio, desce suavemente o cortinado da noite, e no palco da vida começa o espetáculo, um texto inventado, personagens inventadas, cenários fictícios, e a vida resume-se a uma estória inventada, a vida enrolada nas manhãs junto ao abismo, um pássaro sorri, e no espetáculo da vida continua a chover, há nuvens, e a tempestade alicerça-se junto aos espetadores, tristes, impávidos, ausentes, e começa a noite,
Um poema é disparado contra a assistência, e sobre o palco, sobre o palco três cadeiras e uma mesa coxa, e numa das cadeiras está sentado Milan Kundera, sereno, e olha a assistência de frente, como em toda a sua vida, olhos nos olhos,
Recorda os tempos da antiga Checoslováquia, nascido em Brno, em 1929, e recorda, e de olhos nos olhos para a assistência recorda, quando foi demitido de professor no Instituto de Altos Estudos Cinematográficos, viu os seus livros proibidos, e o seu nome banido da lista telefónica, e acabaram por lhe vedar o acesso ao trabalho, e em 1975 fixa residência em França,
Da assistência alguém interrompe Milan Kundera, e o encenador da vida pega no copo de água poisado na mesa, mastiga os lábios e molha-os, e o espetador pergunta-lhe Como é possível ter isso acontecido?, Milan Kundera poisa o copo sobre a mesa, finca as mãos e responde-lhe É assim o palco da vida, meu amigo, é assim o palco da vida!,
E que os dias se escondem nas sombras dos ponteiros de um relógio, desce suavemente o cortinado da noite, e no palco da vida começa o espetáculo, um texto inventado, personagens inventadas, cenários fictícios, e nada é real, os atores que se deitam sobre a seara de trigo junto ao mar, o texto é folheado por um aprendiz de feiticeiro, e todas as personagens, e todas as personagens são engolidas pelo cansaço da maré,
O público aplaude, o público quer mais,
E o encenador da vida com as lágrimas nos olhos vê o seu rosto no espelho pendurado na parede do camarim, e pergunta-me, e pergunta-se, Terá valido a pena?, e puxo de um cigarro, e acendo-o, e quando o poiso sobre o cinzeiro, respondo-lhe Amigo, tudo na vida vale a pena…
E a vida resume-se a uma estória inventada, a vida enrolada nas manhãs junto ao abismo, um pássaro sorri, e no espetáculo da vida continua a chover, há nuvens, e a tempestade alicerça-se junto aos espetadores, tristes, impávidos, ausentes, e começa a noite,
Apagam-se as luzes do teatro da vida e o encenador adormece.
(texto de ficção)