Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

03
Nov 13

Termina a noite e sinto-me um desamor, desalmado, um pedaço de papel sem endereço ou palavras, sinto-me uma flor sem pétalas, ou

Uma boca?

Sou a boca sem lábios, a boca sem desejos, sou a boca das palavras envenenadas pela noite, vigio a luz que ilumina a minha mão, oiço a voz do teu sofrimento, oiço a voz dos teus anseios, oiço a sombra transformada em voz, oiço a pele sedosa da manhã na límpida chuva dos orvalhos clandestinos que aparecem nos dias de ansiedade, oiço a voz do desejo proclamando os inocentes divãs com pernas de cetim, oiço dos cortinados os vãos confusos que a tua língua deixa sobre a mesa-de-cabeceira do quarto duzentos e dezassete, e oiço a voz do simpático cortinado vomitando orgasmos; amo apaixonadamente a noite e a embriaguez das luzes encarnadas dos teus seios.



@Francisco Luís Fontinha – Alijó

Domingo, 3 de Novembro de 2013

publicado por Francisco Luís Fontinha às 01:36

14
Jun 13

foto: A&M ART and Photos

 

Perdi-me como Sábados desperdiçados dentro de uma semana confundindo-se com o pôr-do-sol, perdi-me enquanto ouvia mendigos disfarçados de livros, à porta dos bares abrigos com arrais de aço e pequenas correntes de suor, bebia-se vodka até que descia o enjoo marinheiro quando em alto mar alguém avisava que o melhor para combater o enjoo marítimo era bacalhau cru, de preferência salgado, nunca o experimentei, porque nunca enjoei durante os treze dias de viagem, talvez porque as crianças não enjoassem, talvez porque da cidade de onde eu vinha, tinham-me habituado aos solavancos das calçadas húmidas depois da chuva, vinha o sol, acordavam as ervas mais sonolentas, e ainda de boca semiaberta, amarguravam sílabas de solidão, como às abelhas quando se lhes pedia

Escreve um poema,

As pobres das abelhas não escrevem, e que eu saiba, são felizes, o meu cão não escreve, e é feliz, eu não sou marinheiro, e sou feliz, ando de porto em porto, percorro os oceanos mais distantes do dicionário das palavras difíceis de pronunciar, engasgo-me com a saliva que os amanheceres violentos provocam em mim, e em ti, que vives dentro de mim, pareces com febre, as teclas estão quentes, pergunto-me se conseguirás sobreviver até ao final da noite, de todas as noites, até que regressa o Natal, e depois

Escreve-me um poema,

E depois eu cá em parvalhão escrevia, estás tão quente, hoje, sinto-te nas minhas mãos, palpitas como sobejantes morcegos de porcelana

(fico extremamente irritado quando estou a escrever e o parvalhão do telemóvel sempre a vomitar sons vibratórios, como um reles vibrador adquirido numa loja do Chinês, provocando orgasmos aleatórios na secretária – De madeira? - , sim, sim meu querido, de madeira...)

E partindo-se a porcelana, resta nada, luzes tristemente sós, fingindo melódicos anseios nos fins de tarde, ouviam-se-lhes os gemidos em grãos de areia, e um colchão de palha roçava-se nele,

(fico extremamente irritado quando estou a escrever e o parvalhão do telemóvel sempre a vomitar sons vibratórios, como um reles vibrador adquirido numa loja do Chinês, provocando orgasmos aleatórios na secretária – De madeira? - , sim, sim meu querido, de madeira...)

E também de mim, nova vibração, novo orgasmo, chegada de SMS, e a coitada da secretária – De madeira? - sim, sim, sim meu querido, de madeira, como as searas depois de mortas, como as cidades depois de incendiadas pelo ofegante arremesso de objectos contra natura, odiava as camisolas de gola altas e as calças à boca de sino, mal conseguia segurar-me sobre os sapatos de três andares, mais parecendo a quilha de um veleiro, e agora imagino o coitado do João, de saia, camisola de gola alta e sapatos a condizer, mexe-se como uma andorinha de plumas entre os dedos, pinta docemente os lábios com bâton ruge e quando acorda o dia, vejo-a deitada num qualquer banco de jardim, desesperada, à espera do autocarro, e Auroras Boreais

(fico extremamente irritado quando estou a escrever e o parvalhão do telemóvel sempre a vomitar sons vibratórios, como um reles vibrador adquirido numa loja do Chinês, provocando orgasmos aleatórios na secretária – De madeira? - , sim, sim meu querido, de madeira...)

Escreve-me um poema, e Auroras Boreais poisam como insignificantes poéticos desejos sobre o teu peito onde vive um coração de chocolate.

 

(ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:07

27
Abr 13

foto: A&M ART and Photos

 

Haverá mares suficientes para eu me esconder, sendo eu, um barco sem motor, com uma velha vela, sempre, e sempre, à espera, à espera que acorde o vento, à espera que acorde o meu corpo de aço, me levante, abra a janela da maré, e oiça o teu coração,

e falta-me a coragem para dizer que te amo, alga silenciosa dos rios amordaçados,

Haverá assim ventos suficientes para te trazerem até mim? E se tu nunca apareceres, e se tu, não sei, se tu uma rocha que vive no fundo do mar, como saberás, eu não sei nadar, e se mergulhar, certamente, e pelas leis da física, jamais voltarei a olhar a luz nocturna das ruas de Lisboa, pensar que dos néons há galerias de arte que esperam visitantes, e há caves a transbordar de suor, e há sótãos a apodrecer, sobre a cidade, quando regressa o vento, quando tu desapareces para posteriormente, ao outro dia, ver-te sentada numa esplanada, como se não me conhecesses, como se nunca tivéssemos dormido juntos, inventando sonhos juntos, desenhando desenhos, não juntos, porque tu, apenas me olhavas embrulhados nos pincéis e nas tintas e nas telas e nas minhas loucuras, sempre eternas, sempre desérticas, como as Primaveras, como as dália e as margaridas, sobre a terra, à espera pelo regresso do vento, de vela pronta

zarpar,

Prometer, imaginar ser amado dentro de um cubo de vidro, apaixonado, eu, um barco sonolento, de aço, envergonhado, não adianta semear flores numa laje de cimento. não adianta escrever, ler, não adianta amar fingindo viver, não adianta caminhar,

não adianta fingir ser feliz quando somos a pessoa mais infeliz do universos, não adianta, não adianta mentir fingindo que estamos bem, quando todos os caminhos, todos os rios, e todas as luzes morreram numa noite de insónia,

Não adianta acreditar, sonhar, não adianta ter esperança...

Também tenho o direito de gritar e parar de fingir que está tudo bem,

“tão triste eu quando acorda a noite e cresce e cresce sobre as angustias do jardim um deus louco com uma perna de pau, tão triste eu quando as tuas mãos ausentes percorrem o meu corpo sitiado entre grades imaginárias de aço inoxidável e fios de seda e terminam viagem nas minhas mamas; primeiro regressa a noite,

depois ausentas-te juntamente com a noite e voas de árvore em árvore até mergulhares nos uivos dos meus olhos castanhos, depois, tão triste eu quando acorda a noite, depois a tempestade suspensa no corredor, passas apressadamente e não me olhas, depois, depois caiem todas as nuvens sobre este mísero divã e do relógio depois, depois as minhas mãos começam a envelhecer, a envelhecer depois o cortinado, a janela sem vidros, a envelhecer este quarto de pensão enfeitado de área de serviço, depois o relógio tomba silenciosamente no pavimento e morre o tempo,

tão triste eu. Acorda o chocolate na minha boca e imagino-te sentado no divã a fingires que do outro lado da rua vive um rio com barcos, que do outro lado da rua, tão triste eu, do outro lado da rua...

tão triste eu Meu Amor ausentada de ti.”

E conheci uma rosa que roubei do jardim numa noite de Agosto inventado num livro que poisava na mão de uma menina, os silêncios da noite ausentes de estrelas e alecrim, havia no ar o perfume do desejo, havia o perfume da noite submerso na paixão da literatura e da poesia, eu e a menina morremos, inventados no livro onde envelheceu a rosa e ainda hoje habita, tristemente só, tristemente inventada das palavras escritas apressadamente antes de acordar a noite,

não adianta acreditar, sonhar, não adianta ter esperança...

Não acredito em reencontros porque quando se perde alguma coisa é para sempre ou então, ou então essa coisa não foi perdida,

se eu escrever numa folha de papel e a amarrotar e a esconder dentro de uma gaveta, um dia, mais tarde poderei reencontrar esse manuscrito,

Mas se optar por a rasgar e destruir o reencontro será impossível,

“Poema em cio”

 

Desesperadamente

as minhas palavras

coladas no vidro da morte

em pedacinhos amargos

a boca do poema

em cio

mergulha ele dentro do silêncio

no desejo dos barcos entre as estrelas de papel

e a noite de fingir

assisto ao fim da noite

quando das vaginais madrugadas

ouvem-se os uivos das acácias em flor

 

desesperadamente

as minhas palavras

nos meus pequenos desejos de silêncio amargo

caminhar dentro do mar

antes de acordar o pôr-do-sol

 

dos vidros da morte

as minhas mãos em crustáceos de glicerina

os cogumelos da vaidade em sombras sibilas

e a laranja do amor

aos poemas loucos

as migalhas do aço inoxidável

nos olhos do deus do cio

desesperadamente

 

(Desesperadamente

as minhas palavras

coladas no vidro da morte)

 

e a morte vive no meu corpo

desde o dia que acordei poema em cio

e todas as janelas da poesia não tinham visibilidade para o mar

e todos os barcos

e todos os barcos ouviam-se dentro das estrelas de papel...



Percebes agora porque haverá sempre mares suficientes para eu me esconder, sendo eu, um barco sem motor, com uma velha vela, sempre, e sempre, à espera, à espera que acorde o vento, à espera que acorde o meu corpo de aço, me levante, abra a janela da maré, e oiça o teu coração... e depois

dir-te-ei que te amo loucamente, sem medo, sem medo de perder.

 

(ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:20

19
Jan 13

Melódica a cor das tuas mãos, poética, poética do silêncio das tuas palavras, e hoje, tudo parece arder na fogueira da vida, invento-te, hoje, invento-te a partir da poeira insónia da noite passada, invento-te da música que escorre pelos vidros das janelas e aqui e ali, acolá, um rosto de porcelana acorda das lilases bocas que a chuva deixa ficar sobre os telhados de zinco,

Vêm dos poisados cansados versos do teu amor os primeiros desejos que a noite esconde dentro de um cinzeiro de vidro, o falso vidro, a falsa palavra, o falso amor, do beijo, falsificados todos os beijos que o poeta lança sobre a terra agreste dos corpos húmidos sobre as arestas finíssimas que as ranhuras de um coração de diamante traça na espuma do mar depois dos sexos se cruzarem nos infinitos carris paralelos até que a morte os separe, os falsos lemes das enguias e dos patos bravos, as falsas velas agarrando os mastros em verdejantes carícias que um cego lança contra os rochedos e pacientemente aguarda a passagem do vermelho a verde para atravessar a passadeira sombria das mágoas despenhadas entre os candeeiros a petróleo e as nuvens de seda morta, as palavras, as falsas palavras que oiço da tua boca

Que a chuva deixa ficar sobre os telhados de zinco,

Dizias-me que amanhã entrariam de mãos dadas, a esperança e o acreditar, e os “cabrões” nunca chegaram, e os “filhos da puta” ignoraram-me, ausentaram-se, fugiram, escondem-se tomara eu saber onde, que a chuva

Palavras que oiço da tua alegre boca que eu desenhei nas madrugadas enquanto dormias sem perceberes que nas minhas mãos de cor melódica ardiam cigarros velozmente como os carros de corrida numa pista de brincar construída por uma criança, retirava todos os objectos que viviam na mesa da sala de jantar, de troço em troço, as curvaturas, as rectas, todo o circuito ia tomando forma tal como as árvores à medida que vão crescendo, colocava as pilhas numa caixinha de plástico, e ligava o interruptor, os carros a principio pareciam ter sono, mas aos poucos rodopiavam em voltas de caracol até parecerem adultos à procura de clientes nos jardins de Belém

Vai uma voltinha “filho”?

OS arbustos tombavam como balas de sabão quando tocam a roupa molhada pelas mãos da lavadeira, e eu respondia-lhes Dizias-me que amanhã entrariam de mãos dadas, a esperança e o acreditar, e os “cabrões” nunca chegaram, e os “filhos da puta” ignoraram-me, ausentaram-se, fugiram, escondem-se tomara eu saber onde, que a chuva

Não vai, Não gosto de voltinhas, círculos, quadrados, tômbolas e poemas de gajos e gajas apaixonados, choramingas, lágrimas de crocodilo em rostos de vidro, como os cinzeiros da mãe Arminda, à procura de poiso quando dos jardins de Belém ouviam-se os nus arbustos que o silêncio deixa ficar nas jangadas que o papelão dos lojistas serviria, um dia, de cobertor, desde que, não, não vai e não gosto de voltinhas e se não me doessem os dentes, juro

“Fodia-te os cornos, seu grande cabrão”,

Juro que a melódica cor das tuas mãos, poética, poética do silêncio das tuas palavras, e hoje, tudo parece arder na fogueira da vida, invento-te, hoje, invento-te a partir da poeira insónia da noite passada, invento-te da música que escorre pelos vidros das janelas e aqui e ali, acolá, um rosto de porcelana acorda das lilases bocas que a chuva deixa ficar sobre os telhados de zinco, e às vezes dizias-me que o piano fumava cachimbo, outras vezes

Há qualquer coisa estranha no nosso quarto amor,

Outras,

“Fodia-te os cornos, seu grande cabrão”,

Outras vezes, juro, que a chuva consegue desmatar os corações de aço que as árvores antes de morrerem dão para alimentar os poemas tristes dos poetas tristes que amam tristemente mulheres invisíveis, tristes, como as lágrimas do Inverno (Verão) quando nascia no longínquo continente uma criança fingindo ser um pássaro com asas em fibra de carbono, tinha na algibeira um motor a dois tempos com 3,5 CV, e quando deram por ele

Voava sobre a cidade imaginária que durante a noite crescia para além do mar, iam e vinham, as ondas, os peixes, as casas dos pobres pescadores, e tombavam as árvores com os corações de aço, e

Deram por ele,

3,5 CV a dois tempos, na algibeira um velhíssimo motor, e quando deram por ele

OS arbustos tombavam como balas de sabão quando tocam a roupa molhada pelas mãos da lavadeira, e eu respondia-lhes Dizias-me que amanhã entrariam de mãos dadas, a esperança e o acreditar, e os “cabrões” nunca chegaram, e os “filhos da puta” ignoraram-me, ausentaram-se, fugiram, escondem-se tomara eu saber onde, que a chuva trazia antes de ele tirar o motor da algibeira e elevar-se até desaparecer no cinzento abdómen da menina loira sentada na velha esplanada do Baleizão,

E voava sobre a cidade imaginária que durante a noite crescia para além do mar, mas muitas das vezes

Davam por ele,

Suspenso numa árvores de algodão com braços de açúcar.

 

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 20:24

18
Jan 13

Nunca percebi o que eles queriam, mas nunca mais a nossa vida pacata foi a mesma, nunca mais tivemos noites com estrelas, e nunca mais vimos a lua

Com olhos de papel e boca de jasmim quando os últimos pedaços de tarde sobem a calçada e da Calçada galgam os muros vestidos de amarelo, pareciam moscardos complexos nas mãos de homens apaixonados, eles e eles, e elas e elas com eles,

E nunca mais vimos a lua transparente nas paredes indomáveis dos desejos escondidos

O que quero ser quando for grande?

Gostava de ser uma abelha sem colmeia, ou, ou uma roda dentada sem veios de aço ou correias transmissíveis, livre, voando como as nuvens quando o vento as leva para lá da janela do sótão e das traseiras do velhíssimo edifício de arame as escadas que levitam como os corpos das almas depois de despregadas dos telhados de vidro, às vezes, gostava

Dos desejos escondidos nas flores de areia que tu guardavas nas algibeiras de tecido aos quadradinhos como as grades das prisões, ou como as calças de um pescador quando saboreia docemente o seu cachimbo de algodão, e outras vezes

Gostava

Que as árvores carrancudas, sisudas, e de poucas falas, brincassem comigo, conversassem comigo, e no entanto, abraço-me a elas, e elas

E outras vezes, gostava, que o jantar fosse uma pintura numa tela com muitos beijos de acrílico e bocas de pastel e lábios de chocolate pincelados ao de leve com o bâton vendido pelo cigano da rua do Alecrim Doirado, gostava, e elas acreditavam que do céu vinham as notas de vinte euros que eu lhes dava,

Gostava

Não sei, gostava,

Que as visíveis asas de prata que as moscas utilizam nas festividades que simbolizam a Primavera fossem como os carroceis que invadem as vilas e as aldeias preenchendo os sonhos das crianças, e que os carroceis com olhos de papel e boca de jasmim quando os últimos pedaços de tarde sobem a calçada e da Calçada galgam os muros vestidos de amarelo, fossem moscardos complexos nas mãos de homens apaixonados, eles e eles, e elas e elas com eles, e à sobremesa via láctea uma sanduíche de néon com pedacinhos de solidão à lareira dos sonhos, abria o livro das palavras guardadas em segredo, folheava as páginas de prazer como se fossem um corpo em desassossego semeado numa seara planetária longínqua da saliva em gotículas encarnadas, viam-se dificilmente os barcos em regresso da planície dos fantasmas de alcatrão

Gostava

Dos desejos escondidos nas flores de areia que tu guardavas nas algibeiras de tecido aos quadradinhos como as grades das prisões, ou como as calças de um pescador quando saboreia docemente o seu cachimbo de algodão, e outras vezes

Gostava,

Gostava e outras vezes não percebia o que eles queriam, mas nunca mais a nossa vida pacata foi a mesma, nunca mais tivemos noites com estrelas, e nunca mais vimos a lua dançando e dançando com os lençóis de sémen no leito do amor, gostava que fosses um livro recheado de poemas, gostava que das tuas leves brancas mãos nascessem palavras sem morte e com a alegria desejada, gostava

O que quero ser quando for grande?

Nada,

Que a loucura prateada descesse de cima das árvores e brincassem as jardineiras azuis que suspensas no arame da tristeza deixam o quintal encharcado de lágrimas, nada, nunca quis ser nada, nunca gostei do mar, nunca gostei de sonhar, e às vezes, outras vezes

Gostava

Que as árvores carrancudas, sisudas, e de poucas falas, brincassem comigo, conversassem comigo, e no entanto, abraço-me a elas, e elas, gostava, gostava que as imagens a preto e branco da minha infância se entranhassem nas frestas que o gesso transporta desde que regressamos do outro lado da via láctea, ainda eras tu uma criança docemente inscrita numa ardósia de linho bordado com fios de oiro, e gostava

E outras vezes, gostava, que o jantar fosse uma pintura numa tela com muitos beijos de acrílico e bocas de pastel e lábios de chocolate pincelados ao de leve com o bâton vendido pelo cigano da rua do Alecrim Doirado, gostava, e elas acreditavam que do céu vinham as notas de vinte euros que eu lhes dava,

Gostava

Não sei, gostava.

 

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 20:42

03
Jan 13

Liberta-me, alimenta-te de mim, come-me,

Noite sem fim, quando as ausências programadas cintilam, correm, desgraçadamente pela espinhal medula, as madrugadas, os fantasmas em pálpebras cerradas, húmidas, cansadas em ti, e a Emília

Quero o divórcio,

O meu pai que sim, mas o miúdo fica comigo, como se eu fosse um livro do Kundera ou do Lobo Antunes, e depois de uns quatro ou cinco uísques, o meu pai

Vamos lá repartir os livros, tu, para a Emília, tu ficas com os livros do Milan Kundera, eu, o meu pai, eu fico com todos os outros, ela, a Emília, porque só fico com os livros de Milan Kundera, eu, o meu pai, porque eu quero,

E eu, o miúdo, não tenho voto na matéria? Tudo indicava que não

Quero o divórcio,

A noite quando vinha quase sempre trazia companhia, uma ou duas abelhas deambulavam na sala de jantar, e ainda hoje não percebo

Abelhas na biblioteca? E eu, o miúdo, não acreditava, estás a mentir-me pai,

Claro que não, e ainda hoje não percebo porque nos fomos embora, e ainda hoje não percebo os carris paralelos onde brinca o comboio, e nunca, nunca se encontram no infinito

Divórcio,

Liberta-me, alimenta-te de mim, come-me, pensava eu, o miúdo, em voz alta, abria a janela com vista para as traseiras da casa, o quintal emblemado com silvas e tojos embrulhados em amarelo cetim, urtigas, miudezas algumas, e eu, o miúdo, e eu

Decidam-se, quem fica com quem?

E eu, o miúdo

Estás a mentir-me pai, não é verdade que sou um livro

É?

Talvez, não sei, resmungava a porteira

Toda a porcaria aqui vem parar, como tudo era diferente antigamente, ninguém se metia na vida de ninguém, sempre o respeitoso Bom dia dona Margarida, como passou a noite?, ou

É?

Quero o divórcio,

Como tem passado Dona Margarida?, e eu, não o miúdo, eu a porteira, e eu lá lhe ia dizendo que o maldito reumático não me deixava dormir, e eu, não o miúdo, eu a porteira, a queixar-me das dobradiças e parafusos, E a netinha já deve estar um mulherzinha?

Olhe menina Margarida, um anjo que teve a infelicidade de casar-se com um estafermo, e ao que parece

Quero o divórcio,

Vão divorciar-se, ao menos livra-se daquele paspalho, o meu pai, e só tenho pena dele, eu o miúdo, coitadinho dele, tão novinho, coitadinho dele, um anjo que teve a infelicidade de nascer numa cidade com edifícios de barro e palha com janelas para as urtigas e tojos embrulhados em papel amarelo, e silvas, e pássaros dona Margarida, e pássaros

Ai dona Amélia ainda me lembro da menina Emília em corridas aqui no Hall de entrada, loira, espertaaaa como nunca vi, e deixei de a ver, hoje não a conheço, vamos lá repartir os livros, tu, para a Emília, tu ficas com os livros do Milan Kundera, eu, o meu pai, eu fico com todos os outros, ela, a Emília, porque só fico com os livros de Milan Kundera, eu, o meu pai, porque eu quero, e pássaros dona Margarida, muitos, em cada esquina

É?

Um anjo que teve a infelicidade de nascer numa cidade com edifícios de barro e palha com janelas para as urtigas e tojos embrulhados em papel amarelo, e silvas, e pássaros dona Margarida, e pássaros, e eu, o miúdo, e eu

Porquê pai? Tu, para a Emília, tu ficas com os livros do Milan Kundera, eu, o meu pai, eu fico com todos os outros, ela, a Emília, porque só fico com os livros de Milan Kundera, eu, o meu pai,

Porque eu quero,

E eu, o miúdo, e eu a ouvi-los

Liberta-me, alimenta-te de mim, come-me,

Noite sem fim, quando as ausências programadas cintilam, correm, desgraçadamente pela espinhal medula, as madrugadas, os fantasmas em pálpebras cerradas, húmidas, cansadas em ti, e a Emília

Quero o divórcio,

Como se eu fosse um livro, um pequeno livro, oco, simples, sem palavras, sem carroceis, carrinhos de choque, eu, eu o miúdo, eu como se eu fosse um livro de poesia que ninguém

Eu leio muito

Lê,

Diurno, o nocturno miúdo dos desejos, como se eu, o miúdo, como se eu fosse um livro, grosso, aprisionado numa prateleira longínqua onde barcos de madeira se passeiam, sonham, caminham, e cavalgam montanha acima, até chegarem ao céu dos incensos, e eu, eu o miúdo

Sofrido, cansado, triste, imundo,

e eu, eu o miúdo

À espera de um afago por parte da porteira, a única que nunca se queixava dos ossos que diziam crescer nas paredes do edifício construído em barro e palha, e com janelas

Lembras-te miúdo?

Claro que sim,

Para o quintal emblemado com silvas e tojos embrulhados em amarelo cetim, urtigas, miudezas algumas, e eu, o miúdo, e eu

Decidam-se, quem fica com quem?

E eu, o miúdo

Estás a mentir-me pai, não é verdade que sou um livro

É?

Claro que não.

 

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:18

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