a desilusão da noite
quando o corpo cessa de sonhar
debaixo do alpendre os ossos sobejados das tempestades do silêncio
um fio de sono
refugia-se na madrugada
a insónia partiu sem deixar rasto
fugiu das minhas pálpebras
enquanto a solidão brincava no mar
e um barco
e um barco enferrujado atrapalha-se com os meus frágeis braços de porcelana
tenho medo da chuva clandestina
sem morada para aportar
tenho medo da morte que semeia a dor
que semeia o sofrimento
e a escuridão entra no meu peito
sinto o meu coração em pequenas fatias de cansaço
apetecia-me escrever-te
mas deixei de ter palavras para ti
em tempos tinha o teu rosto aprisionado num caderno
mas com a idade
esqueci-me dele
do caderno
e esta ausência viagem permanece sem destino
que só a desilusão da noite
sabe desenhar na areia húmida dos teus seios
o desejo sem navegar em ti
o esquecimento dos teus lábios saqueando a cidade
navego em ti como um sonâmbulo arbusto do teu jardim
e a noite me leva para o infinito
o grito
o sorriso das serpentes nas amarras do beijo
o triste sono sobrevoando os lençóis da alegria
amanhã estarei aqui sentado?
amanhã estarei aqui sentado a folhear o caderno
onde se encontra aprisionado o teu rosto?
amanhã haverá tempestades de silêncio?
(mas com a idade
esqueci-me dele
do caderno
e esta ausência viagem permanece sem destino
que só a desilusão da noite
sabe desenhar na areia húmida dos teus seios)
amanhã?
Francisco Luís Fontinha
quarta-feira, 30 de Março de 2016