Nesta cidade me suicido
Com a lâmina de barbear
Que sobejou da última ceia…
As árvores acompanham-me até ao túmulo
Onde dormirei até ao amanhecer,
Depois, depois serei levado por uma jangada de solidão,
Levo na algibeira as amarras,
A pequena bagagem, o indispensável,
Alguns livros,
Papel, caneta… e pincéis,
Nesta cidade me suicido
Como um cão raivoso,
Revoltado com as notícias do jornal,
Vende-se,
Compra-se oiro,
Aluga-se apartamento junto ao mar…
E do meu corpo nem conseguem falar,
Apenas que o silêncio deixou de habitar as minhas tristes mãos de porcelana,
O cansaço,
O cansaço de escrever sem perceber onde nasci,
O que faço aqui? O que faço nesta cidade pintada a preto-e-branco,
Os muros dormem enquanto desenho um sorriso na terra queimada pelo vento,
Sinto o azoto do amor descer a calçada e alicerçar-se no rio,
Sinto a alvorada a comer-me…
Nesta cidade onde me suicido,
Com a lâmina de barbear…
Da última ceia… o perigo de acordar antes do sono,
O ultimato lançado pelo desejo para que eu seja depositado num aterro sanitário…
Não, não me agrada a ideia de ser comido por coisas simples
Que alguém deitou fora…
E morre o poema sem que o poeta se levante do chão ensanguentado pelos beijos da madrugada,
O papel arde,
A caneta sonolenta, tomba no pavimento encharcado de sémen…
Apagam-se todas as luzes,
Apagam-se todos os silêncios…
E apenas eu, só, nesta cidade enraivecida pelo cacimbo.
Francisco Luís Fontinha
16/02/17